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Entrevista: Ana Frango Elétrico

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Ana Paula Simonaci, Santiago Perlingeiro e Leonardo Lichote, e originalmente publicada no Cadernos de Música – Ana Frango Elétrico (Revistas de Cultura, 2021).

Primeira parte – 2019

Ana, vamos começar falando um pouco da sua infância e o começo da sua relação com a música?

Nasci no dia 19 de dezembro de 1997. Fui criada em Santa Teresa, no Condomínio Bairro Equitativa. Fui alfabetizada com música na Pro-Arte quando criança. Meus pais não tocam, mas quiseram me botar em contato com a música. Depois fui fazer piano no bairro, em Santa Teresa, com uma senhora chamada Raquel. Acho que eu fiz dos meus 6 aos 10 anos. Fazia uns concertos para a família, sabia ler partitura. Fiz prova para a Escola Villa-Lobos. Pra crianças a prova não é teórica, mas eu sabia teoria mais do que hoje em dia. Com 10 anos eu fiz um pouco da Escola Villa-Lobos. Odiava. Quis sair. Fiz um ano, dois. Comecei fazendo piano, não gostei, fui pro violão, não rolou. Eu era muito tímida, lembro de uma experiência com coral, sei lá, seis meses no coral da Villa-Lobos. Lembro de algumas coisas, mas eu lembro de ser muito tímida, era muito difícil pra mim. Enfim, eu gostava de pop. Queria tocar pop.

O que você não gostou lá?

Eu era criança, não gostava. Minha mãe falava assim: “você vai me agradecer mais velha”. E agradeço mesmo. Mas eles tinham essa onda, cara. Minha mãe canta muito bem. Eu tinha 10 anos. Acho que até um pouco mais nova. Porque com 10 anos meus pais se separaram e eu não estava mais na Villa-Lobos. Então acho que eu era até um pouco mais nova, talvez oito. Imagina, você é muito criança. Era um saco, eu não gostava, não queria fazer aquilo. Fiquei meio traumatizada. Mas no final das contas sempre me relacionei com música. Eu estudei no CEAT,  e sempre dava um jeito de ficar dois semestres na música. Porque tinha que revezar o primeiro com o segundo semestre, você fazia teatro e depois fazia música. Eu sempre dava um jeito de fazer um ano inteiro de música. Mas no terceiro ano do ensino médio eu não queria fazer música, mas já compunha. Com 16, 17 anos eu comecei a compor. Tenho essa banda chamada Almoço Nu, que é do tempo de colégio. Começamos cantando Gilberto Gil, Jorge Ben, uma ou outra música nossa, do Gabriel Grabois, que é o baixista, ou do Ivo Costa, que é o guitarrista.

Almoço Nu é em referência ao William Burroughs?

É, sim. Mas não tem nada a ver.

Mas a leitura fazia parte também

das suas referências nessa época?

Cara, nessa época começou a surgir a literatura na minha vida… Eu não gostava de fotografia colorida e nem de poesia. Nada! Eu não gostava de nada disso. E aí do nada eu comecei a gostar. Brinco que… Na verdade, eu fui um dia na biblioteca do colégio e vi um livrão do Salgado Maranhão. Foi o primeiro poeta do qual eu gostei. Eu abri e li umas coisas que eu fiquei fissurada. Dali eu comecei a gostar de poesia. Aí veio o Rimbaud, Federico García Lorca. Começou, de fato, a surgir um interesse poético. Nunca li romance, não gosto, não consigo. Mas no terceiro ano eu não queria fazer música, aí fui fazer pintura em Belas Artes. Abandonei, estou abandonando, que vergonha. Mas aí comecei a fazer música.

O Little Electric Chicken Heartjá tem uma relação com cinema. Você passa por várias linguagens da arte, né? Música, artes visuais, poesia, literatura e cinema…

Com cinema eu tenho tido uma relação um pouco mais recente. Assim como, por exemplo, eu nunca consegui ler romance, eu sou uma pessoa que perde a atenção fácil. Então livros grandes eu tenho dificuldade, não acabo. E aí a poesia me captou muito na parada de eu entender de uma coisa que eu achava muito chata, e de eu entender que em uma página eu consigo fazer uma ficção científica. E aí quando eu entendi isso através da poesia, eu comecei a ficar fissurada na potência da literatura, sabe? De possibilidades com pouco orçamento.

E por que você não foi fazer música, foi fazer pintura?

Ai, não queria fazer música. Já compunha, mas eu não tinha a menor vontade… Eu acho que fiquei traumatizada com a Villa-Lobos, então não quis de jeito nenhum fazer. Queria ser pintora, escultora.

E como começou a escrever letras?

Começou meio com anotações. Minhas primeiras letras que estão mais no Almoço Nu são letras engraçadas, que você vê que não tinha consistência. O professor de Geografia falava alguma coisa que eu achava boa, a maneira com que ele falava, o negócio do som da palavra. Aí era muito com anotações, eu pegava o trecho de uma coisa que eu achava divertida. Meu amigo trocava duas palavras, eu achava isso hilário e anotava. E aí comecei a juntar umas coisas de escrita que se tornou o Escoliose, que é um livro. O Escoliose antes era um panfleto de uma exposição na minha cabeça, de pinturas que já nem existem mais. E aí vira livro.

Como é a coisa do título pra você, do nome dos projetos, das obras?

No começo do projeto eu já tenho o nome. De um álbum, por exemplo, já que eu estou falando de música.

Vamos voltar à sua trajetória como artista propriamente. Como começou?

O estirão de crescimento na composição se deu completamente… Meu pai é artista plástico, ele sempre me levou para montar exposição com ele. Eu tenho memórias muito fortes da minha infância de atelier no Centro, na Rua Taylor, o cheiro de material. Então é isso, assim como na música eu fui alfabetizada, eu fui estimulada no sentido de que eu estava lá com o meu pai trabalhando. Ele trabalhava na época com esculturas, cheiro forte. Então eu sempre gostei, eu tenho déjà vu com cheiro de material, sabe? E eu gostava muito. E isso eu acho que era um desejo de ir pra faculdade e de estudar uma coisa clássica, mesmo todo mundo falando que eu não ia gostar, que não tinha tanto a ver comigo. E eu falava que era por isso mesmo que eu queria. Cheguei na hora e vi que obviamente eles estavam certos.

Foi em 2016 que você entrou na faculdade?

É. Um pouco antes, eu já comecei a gostar de coisas específicas na música, Novos Baianos, Caetano, Gil, Jorge Ben, e a tocar em casa, cantar esses nomes. E aí, ao mesmo tempo, começo a tentar desenhar um pouco mais. Meu pai sempre me dava caderno pra escrever, negócio que eu nunca gostei, gostava de jogar futebol na praça. Não gostava, nunca desenhei e tal. Então, até os meus 16 anos eu não desenhei. Aí foi conjunto essa parada de, tipo, começar a querer fazer artes e tentar resolver do meu jeito uma estrutura. No caso da pintura, o que é lindo, se eu resolvo pintar um quadro, eu tenho que resolver esteticamente esse quadro. Na música é a mesma coisa, só que em outro campo sensorial.

E quando surge a Ana Frango Elétrico?

Surge em 2016. Um pouco antes eu já pichava “frango elétrico mormaço queima”. E uma amiga minha, a Janaína, falou assim: “Cara, por que você não usa Frango Elétrico? É a sua cara”. Eu não tocava sozinha. Foram juntando diversos fatores, acho que conscientes e inconscientes, que hoje em dia eu já estou entendo um pouco mais também, relacionados a eu não querer usar certos nomes. A perpetuação do sobrenome eu já sabia que não queria. E o fato de ser homem e ser mulher, de uma maneira leve. E aí em 2016 comecei naquela ocupação do colégio André Maurois. Já tinha tocado um pouco antes algumas coisas sozinha, mas não me apresentando: “Olá, eu sou a Ana Frango Elétrico”. Nesse dia me inscrevi pra tocar duas, três músicas. Perguntaram: “Qual seu nome?”. “Frango Elétrico”. Desde então ficou.

Você falou do seu começo de composição. Tem uma coisa que às vezes eu sinto na sua música, que você trabalha muito com colagem e com ready-made. Como isso funciona?

É principalmente um começo da composição. Porque depois de um tempo começou o lance da poesia a descer. E aí ela desce com um pouco mais de consciência e mais estruturada. Mas muitas coisas vêm realmente do que eu ouço, o ouvido atento no ônibus, no metrô, o amigo chapado… Começou assim o meu interesse. Até hoje eu só componho quando eu estou escrevendo. Quando eu não estou escrevendo vem uma música, duas, espaçadas assim. Mas se eu não estou anotando pensamento… Porque pensar eu sempre penso, porque a gente sempre ouve coisas interessantes. Eu gosto muito do som da palavra, dos raciocínios que acabam surgindo, pessoais de cada um, de como a pessoa coloca o seu imaginário das coisas. Então eu estou sempre pensando, mas se eu não estou escrevendo e anotando, eu não componho. Eu só componho mais efetivamente e ativamente quando eu estou registrando os pensamentos que eu tenho naturalmente e que rendem coisas.

A sua arte, seja música ou poesia, tem um elemento muito forte do humor também. Como é que veio isso?

É muito natural meu. Eu não fico tentando ser engraçada, sabe, tipo “ah, eu quero ser engraçadinha”. Acho que principalmente no Mormaço Queima, no meu raciocínio um pouco mais nova, mais 18 anos. Porque com 18 anos eu era muito revoltada com a condição da intérprete, da cantora, de como a gente tem que se portar no palco. Eu tinha aversão a certas vozes, sabe? Aquela voz de cantora, tinha nojo. Hoje em dia me permito também poder cantar, ouvir canções mais clássicas, vamos dizer assim, de estrutura. Porque as minhas estruturas de canção são mais alopradas. Mas é muito natural. Eu não fico, tipo assim, escrevo uma canção: A B A B A B refrão ponte, para depois desconstruir. Eu não escrevo assim e falo: “haha, vou rasgar o papel e misturar pra ver como é que fica”. Em nenhum momento é assim. É natural de um raciocínio do que é verso, do que é refrão.

Sobre a temática das suas letras, o que a motiva?

Acho que tem um principal fator que é a transgressão dos sentidos. E trazer um pouco principalmente da poesia e dos meus outros raciocínios estéticos cromáticos. Eu acredito muito em cromoterapia e na poesia.

Essa questão da cor, que vem da pintura, aparece nos seus álbuns e também aparece nas suas letras. A cor é muito forte pra você. Normalmente na música as pessoas não têm muita sensibilidade pra cor.

Sim. Eu acho que a gente não é muito estimulado no nosso dia a dia. Quer dizer, a gente é, mas a gente não se atenta. Lembra que eu falei que eu não gostava de fotografia colorida? Então, eu não entendia a cor. E em conjunto a esse processo do som, de estar angustiada e sofrendo as primeiras paixões por mulheres no meu ensino médio, eu comecei a gostar e a prestar atenção nas cores. Porque, na verdade, é só uma questão de estar atento, porque ela está te tocando, assim como o som, assim como várias coisas dessa vida maluca, dessa nossa condição.

Então, na verdade, eu comecei a estar atenta às cores. O sinal, que é verde, amarelo e vermelho. As cores da publicidade. Estão aí o tempo inteiro. Lilás claro, lilás escuro, azul marinho, roxo, azul, um verde ali que é uma cor completamente complementar a isso tudo. Então, na verdade, está acontecendo o tempo inteiro. E eu acho que uma das minhas motivações é tentar juntar isso de fato. E quando eu torno meus poemas, canções, principalmente os poemas, eu acho que isso fica mais conciso e claro. É o caso do “Se no Cinema”, que veio de uma poesia e que fala justamente sobre isso. “Ah, se no cinema/ Se sentisse a temperatura/  Do amor / Do casal da tela, do sexo dela / O cheiro da cor / Ah, se sentisse”. Pra mim acho que isso resume todo o meu raciocínio.

A letra vem sempre antes? Ou é caso a caso?

Depende muito, cada caso é um caso. Porque às vezes o poema já existe há um tempão, e aí do nada eu encontro alguma música para ele. Uma coisa que eu estava fazendo separada, mas que puxa ele. Ou é o caso de eu sentar e musicar. No caso de “Torturadores”, eu musiquei um poema. Já “Se no Cinema” já foi vindo junto a música e a letra.

Você falou das influências do começo, do Gil, do Caetano, do Jorge Ben, mas depois você está tocando e trocando com compositores como Rogério Skylab e Arrigo Barnabé. Como foi isso?

Foi um momento muito importante pra mim. Porque antes de eu começar a compor, o que começou a me virar uma chave foi quando eu descobri a Vanguarda Paulista, principalmente Itamar Assumpção e o Arrigo. Porque todo mundo tem essa: “Ah, os deuses já fizeram tudo, quem somos nós, a ralé”. Esses deuses da música brasileira, Caetano, Gil, Chico. O fato é que não precisa nem da ralé, nem dos deuses. Os tempos são outros, e é bizarro a gente acreditar nisso. Principalmente no âmbito da canção, né? Porque daí a gente tem o eletrônico, e tem coisas incríveis e fodas e que eu adoro.

Mas no âmbito da canção, isso que vem do violão, e que seja de uma banda, que ainda remete a uma coisa do raciocínio tropicalista ou de bandas estadunidenses e inglesas dos anos 1960. Aí nesse âmbito, a gente é muito resolvido. Já fizeram tudo nesse formato. E eu tinha esse pensamento, de nem tentar compor, fico ouvindo essas coisas fantásticas, todo mundo foda. O que é que eu vou falar de novo, né? E aí, quando eu comecei a ouvir o Arrigo e o Itamar, foi uma liberdade, porque eles fizeram algo novo depois de tudo aquilo. Foi quase um tipo “pô, vamos tentar coisas aqui e ver no que dá?”. Me deu uma liberdade.

Eu lembro que, acho que foi 2016 também, eu já compunha, mas foi um dia marcante, porque eu fui ver o Arrigo Barnabé e o Rogério Skylab no Circo Voador. E eu fui ainda mais pro Arrigo. E eu fiquei muito surpresa com o show do Skylab, os dois shows foram incríveis. Eu lembro de ter sido uma noite que eu saí falando: “Nossa, uau, eles têm tudo a ver e não têm nada a ver ao mesmo tempo”. É uma aula de possibilidades da canção e dos seus desdobramentos possíveis.

Os dois são muito performáticos e quase dramatúrgicos no palco.

Total, cara. Cartunistas.

Você trouxe isso para sua música de alguma forma?

Eu não sei por que, eu me sinto uma pessoa tão não-performática no palco. Eu sei que vira, porque de um segundo de nervoso de não lembrar mais de nada vira a chave, e é muito gostoso. Mas eu não sou do teatro, não sou cantora performática. A minha performance tem a ver com o som que eu tiro da minha voz e a minha guitarra. E eu estou querendo até tirar um pouco a guitarra nesse próximo show e tentar me virar e sustentar no palco sem esse apoio. Mas eu não me sinto uma pessoa performática.

Como você enxerga sua geração, esse momento no qual você cresceu?

Eu sou de 1997. Quando eu cresci, os celulares já eram comuns, mas também joguei muita bola na rua. Lembro dos telefones da minha mãe bem anos 1990, ainda muito simples, e uma casa completamente daquela época. Na minha pré-adolescência, é o momento que aparece o YouTube, e eu fui podendo conhecer muita coisa que nunca teria acesso, muita informação do que gosto e do que não gosto, do que amo e do que odeio. Então, a minha geração é muito específica no sentido de informação, uma sobrecarga que quase dá um bug.

Quando eu comecei a me apresentar como Ana Frango Elétrico, fui conhecendo pessoas mais velhas, trocando com elas. Agora, estou conhecendo pessoas mais novas do que eu também, como é o caso da Sophia Chablau. Eu sempre fui a mais nova, então está sendo interessante para mim ver como as pessoas mais novas do que eu e perceber que já tem um pouco de mim naturalmente. Porque eu conheci pessoas incríveis, com quem eu aprendo muito nos meus processos de estúdio, como o Vovô Bebê e a turma que me acompanhou na produção do primeiro disco: o Thiago Nassif, o Marcelo Callado, o Gustavo Benjão e o Guilherme Lírio.

Ao mesmo tempo que fui aprendendo com essa galera mais velha, também estava gravando com o pessoal da minha idade, com o Almoço Nu. Lembro da gente começando a gravar na sala de casa, depois indo para um estudiozinho. Então, eu estava tirando som de estudiozão, com um pessoal mais experiente, e também fazendo uma coisa menos estruturada. Essas experiências são muito boas. Como era bom tocar em sarau, quando estava no colégio. Foi a maior escola, entrar, tocar rapidinho, sair. Não passa o som, pluga a guitarra, toca 20 minutos e pronto. É divertido!

Como foi a gravação do Mormaço Queima?

A gente começou a gravar em 2016, mas o processo foi longo e o disco só foi sair realmente em 2018. Eu já estava querendo gravar. No meu ensino médio, eu gostava muito das bandas da galera e vi muita banda que eu adorava acabar sem ter deixado nenhum registro. Todo mundo briga, não grava, nada acontecia. Então, eu percebi que se não gravasse naquela hora, eu perderia o que estava fazendo. E que provavelmente eu acharia tudo uma merda depois, porque é uma produção ainda imatura, de adolescente. Mas, e daí?

Então, eu comecei a falar com o Marcelo Callado que queria gravar, até porque sabia que não iria querer tocar aquelas músicas depois e nem gravá-las, mas que eu queria deixar registrado. E eu estava certa, porque hoje não gosto mesmo. E ele se empolgou e falou pra gente gravar. Como ele tem o Estúdio Do Amor com o Benjão, dava para usar na gravação. Eu já conhecia o Benjão porque ele é pai de um amigo do meu irmão mais novo, que tem 10 anos. A gente convidou o Thiago Nassif também, que foi fundamental no processo do álbum e edita muito bem.

A gente começou a pensar o disco e decidiu que gravaria tudo em cima do que eu fazia. Eu tocava sozinha na época, não tinha banda. Era voz e guitarra, com drive baixo e um fuzz ruim. Tudo sozinha. Aí, logo o Gui entrou para tocar bateria. E ele nem é baterista. E a gente decidiu que ia gravar sem click, tudo a partir do que eu tocava. Foi um processo que queria ser muito fiel a como eu tocava ao vivo. Foi uma decisão quase suicida, mas foi uma experiência muito legal. Porque quando você ouve, é um álbum completamente flutuante em termos de tempo. Tem que tirar o relógio de pulso, porque se você tentar contar não vai dar certo.

Falam que The Madcap Laughs, do Syd Barrett, foi gravado assim também, com os músicos do Soft Machine correndo atrás do tempo dele. Vocês pensaram nisso?

Quando a gente começou a gravar, não tinha muita referência. Era para ser fiel a mim. Mas depois eu fui descobrindo alguns discos que também foram gravados nesse processo. Tem a ver com o processo do disco de 1969 do Caetano Veloso também, aquele álbum branco, que tem “Irene” e “Empty boat”. Foi esse processo, mas acho que ele usou metrônomo. Mas tudo em cima deles, o Gil no violão e o Caetano cantando. É um disco que eu gosto muito. Eu comecei a ouvir Mac DeMarco também, umas coisas caseiras. Só que a gente fez sem click, então o processo é muito doido. Hoje em dia eu ouço o disco e acho uma loucura eles terem deixado fazer assim. Eu me diverti e não queria que falassem nada mesmo, não.

Isso demanda eles serem muito bons músicos, porque eles tiveram que segurar as pontas depois e incluir os instrumentos. Como começou essa troca com o Callado?

Eu comecei a ir aos shows do Caio Paiva. O Caio, a gente se conhece do colégio, mas só ficamos amigos depois. Quando eu conheci o Callado, já começamos a conversar sobre fazer o disco, foi muito rápido. Ele foi uma pessoa fundamental também porque depois foi ele que me botou pra tocar baixo na banda dele. Eu nunca tinha tocado num baixo. Falou: “vem ser a minha baixista”. E eu comecei a tocar baixo assim. Hoje em dia estou estudando baixo.

E os arranjos, como foram pensados?

Cara, o arranjo era em cima de mim. Não teve nada programado, eu tocava e depois a gente via como podia colorir aquela música. O Mormaço tem um raciocínio muito mais visual. Para mim, tanto a poesia, quanto a pintura, quanto a música, tem o mesmo processo: primeiro, acho que tenho uma ideia, e na primeira pincelada, ou escrita, ou gravação, eu falo assim: “Caguei tudo, agora vamos consertar”. Nada sai como o planejado. E daí temos que criar em cima do que está acontecendo. Como é que vai soar? O Nassif, no processo do Mormaço, sempre falava assim: “Ornou?”.

Porque era isso: não tinha click, voz no primeiro take, guitarra, tudo no mesmo take. Gravei vazando guitarra e voz. Havia uma preocupação muito grande com o timbre. Aprendi muito sobre isso. Foi um processo muito interessante de não ouvir coisas antes e daí passar a ouvir coisas. De descobertas. Como não tinha tempo, a gente tinha uma preocupação com o timbre e de como colorir isso. De como as coisas iam soar.

Vocês pensaram em ter unidade de timbre no disco? Pensaram um timbre que atravessasse tudo  ou cada música era uma solução?

O timbre foi surgindo. “Vamos gravar essa guitarra”. Fomos experimentando. “Ah, é esse aqui”. Tinham algumas referências que eu queria usar, porque eu gostava de Mac DeMarco, gostava de coisas específicas.

Quais eram as cores do som do disco?

Eram as da capa. Era muito saturado. Mormaço era uma sensação muito saturada de vermelho, amarelo, roxo, verde limão.

Como é dar o salto do primeiro pro segundo disco?

Nesse meu segundo álbum teve uma preocupação de como eu queria fazer. Um pensamento sobre produção musical, que eu não tinha antes. Pensar a estrutura do disco. E querer  experimentar pensamentos que eu estava tendo sobre como se propõe a música que está tocando, de qual a sensação que você quer passar. E como passar isso tudo para a gravação. Foi um disco mais pensado, nesse sentido. Acho que eu vou demorar um tempinho até gravar de novo nesse esquema de eu sozinha e todo mundo gravar em cima.

Como foi se formando seu público?

Meu público é um público médio, super médio. E foi muito natural, porque eu nunca patrocinei nada. Comecei a fazer show pra caramba. Aí teve uma época que eu tive que dar uma parada porque não estava sendo legal pra mim, eu estava ficando desgastada. Pagando para tocar. Financeiramente começou a ficar inviável fazer muito show no underground. E o público surgiu, o público gostando, no boca a boca mesmo. É muito natural. E são loucos, eu adoro.

Você participou desse projeto, Xepa/Nata. Como foi?

Xepa/Nata é uma coletânea de cinco bandas. Cada uma com um lado A e um lado B. Gravei duas canções, “Chocolate” e “Cinza e Verde Limão”.

“Chocolate”, que está no Little Electric Chicken Heart?

Que está no disco de agora também. Foi super interessante gravar voz, principalmente nesse meu novo disco. Porque no meu primeiro disco é uma voz de 18 anos. Tem aquela coisa de não cantar várias sílabas, língua presa. Eu ainda tenho língua presa, mas agora tenho uma preocupação um pouco maior com a atenção ao meu canto. Mas na época do meu primeiro disco eu tinha aversão a esse cuidado. Eu cantava do jeito que achava que tinha que ser. Era meio impulsivo. Mas, voltando ao Xepa/Nata, foi uma ideia do Caio Paiva. Ele trabalhava no selo Embolacha e tinha um desejo de gravar um vinil reunindo bandas que ele achava que tinham alguma unidade conceitual.

Eu acho que sou a mais nova da coletânea. As outras bandas são a Crusader, Nitú, Exército de Bebês e Os Dentes. Essas outra bandas são de uma geração acima da minha, com vinte e poucos anos. Todas bandas da Zona Sul carioca. O disco é um registro desse momento em que essas bandas se encontraram numa cena. Hoje várias delas acabaram. Podem ser que voltem, mas estão em coma. Eu sou a resistência. 

Quando você começou a achar que a coisa ficou séria?

O bagulho ainda não está sério, né? Mas, pô, larguei a faculdade para conseguir decidir que era isso que eu queria fazer, que eu comecei a investir em música e preciso ter algum retorno. Isso foi final de 2017.

Antes de lançar o Mormaço.

O Mormaço é lançado de uma maneira completamente independente, sem quase nenhuma ambição, no sentido de nenhuma parceria. Não tinha selo. Podia ter tido. Eu queria lançar do jeito que fosse. E por mais que fosse uma afirmação de ser uma menina jovem tocando guitarra e canções um pouco tortas, o disco me colocou em um lugar muito bom. As pessoas pararam de tentar me encaixar em alguma referência anterior e passaram a me ouvir. Eu tocava sozinha e as pessoas ficavam tentando entender o som que eu fazia usando referências. Imaginavam muitas coisas. Cada um vinha falar: “Nossa, é muito Rita Lee com fulaninha”. Era sempre muito fulaninho com fulaninho. Então dá um suco verde no final das contas.

Suco verde?

Quando eu comecei a ouvir a Vanguarda Paulista, eu fiquei pensando sobre esse papo de que a gente nunca vai fazer nada de bom de novo, ou original de novo. Eu pensava também em algumas gerações um pouco acima da minha. Porque comigo eu percebi que comecei a tocar num momento em que a própria mídia estava um pouco mais aberta para quem estava surgindo. Num sentido de não tentar ficar só empurrando filho de fulano, sem colar tanto, e dos mestre estarem começando a envelhecer. Tem um bloco de gerações acima da minha que encontrou um ambiente muito fechado, dominado pelos grandes mestres. Mas eu comecei a tocar num momento que estava rolando um interesse em ver o que estava aparecendo de novo. Tanto que senti que fazia uma música torta, mas houve um interesse das pessoas e da mídia em entender o que era aquilo.

E suco verde é uma teoria de que, quando você mistura duas ou três frutas, como laranja e cenoura, você chama de suco de laranja com cenoura. Ou acrescente mais uma coisinha e vira suco de laranja, cenoura e acerola. Mas tem um momento, quando começa a colocar couve, gengibre, chia, macadâmia, que tem que dar outro nome. Aí vira suco verde. Então, eu ficava pensando que na minha geração cada um tem uma referência tão própria que não tem como dar um nome.

No meu caso eu boto pop rock. Porque era uma coisa que eu fazia questão. Quando começavam a falar comigo: “Ah, você é a nova MPB”. Eu não dava nem espaço para a nova MPB, entendeu? Faço uma bossa pop rock decadente com pinceladas punk. Não dava nem espaço ali pra nova bossa nova ou nova MPB, sabe? E aí tem a ver com a teoria do suco verde. Tem momento que é muita coisa pra gente saber o que é. É tanta referência do que a gente gosta e do que a gente não gosta, e as duas têm tanta influência sobre nós que acho que vira uma chave de possibilidades das coisas. Aí é difícil dar nome ao movimento. Não adianta ficar perguntando se vai ter um movimento conciso. As paradas vão ser tão distintas e singulares porque a gente não tem mais uma referência central.

Mas, na Vanguarda Paulista, você pode até conseguir achar uma identidade própria e tal. Mas o manguebeat não tem uma identidade. Ele vai do Comadre Fulozinha a uma Nação Zumbi, passando pelo Mundo Livre SA. Tem muita diversidade também no manguebeat.

É, mas aí tem o manifesto, né? Aqui eu não vi ainda ninguém fazer manifesto. Será que precisa? Aí é que está, eu acho que já é outra geração. A parada que vocês perguntaram da minha data, sabe? Eu sou de 1997. A galera que está chegando aí é do anos 2000, sacou? Eu vou tocar agora sábado só com sub 21. É um show só sub 21, galera dos 2000. Eu sou de 1997, a banda toda outra é de 2000. E aí eu acho que perde a referência. A gente não ouve só o que a gente gosta, a gente ouve tudo. O que a gente gosta e o que a gente não gosta têm influência sobre nós.

O que você pensa sobre a questão de ser mulher, na sua performance no palco. O que isso levanta como questão política nas suas músicas?

Sou apaixonada por homens e mulheres. Não me identifico com padrões de beleza e de gostos femininos, nunca me identifiquei desde criança. Tive a sorte de crescer numa família e numa escola que permitiram que eu fosse pouco podada, dentro das possibilidades de quem vive nessa sociedade que poda a gente o tempo inteiro. Eu sempre pude ser eu. Minha sexualidade, as roupas que eu vestia. A minha política está muito nessa transgressão poética, principalmente, e na própria estrutura da composição. Isso está dentro de mim e está em algumas letras e poemas mais explicitamente. Mas eu entro muito em um campo realmente surrealista. Não é o surreal pelo surreal, mas no sentido sensorial. Sensorialista existe?

Como você vê o diálogo da crítica com a produção na sua geração?

Eu não sei muito ao certo, mas… Eu não sei, na verdade. Acho que faltam críticas de verdade. Tipo, não temos mais um Lester Bangs, mas acho que também não cabe mais um Lester Bangs. De qualquer forma, tem alguma coisa acontecendo, gente que está acompanhando o que estamos fazendo e pensando sobre isso. Como eu disse, quando eu comecei a tocar, eu senti começando uma abertura. Vem se tendo essa abertura, essa procura de novos sons. Mas é uma abertura também que começou a chegar, porque muita gente começou a escancarar que havia alguma coisa interessante acontecendo. A gente hoje tem grandes nomes, por exemplo, a Letrux, O Terno, Rubel, que são canções que são específicas, cada um pra um lado, e que começou a ter público.

Eu sempre tive essa mania de achar que eu sou doida demais, porque ficavam me falando, e eu ficava com vergonha. E as minhas experiências mais legais foram quando eu fui parar no meio da rua pra tocar, e as pessoas que eu achava que não iam gostar, que eu ficava com vergonha de tocar, cantavam, adoravam. Quando um evangélico adora a minha música e vem falar comigo: “E o ‘fala pra caralho, mas não picha igreja’, o que você quer dizer com isso?”. E eu fui conversar com o evangélico sobre isso. Coisas que eu ficava envergonhada e que eu fui ver que, porra, que movimento.

Então, na verdade, você vê que todo tipo de música, se escutada, tem capacidade de gostarem ou não. Ou de tocar em alguém ou não, seja pelo adorar ou pelo odiar. A sensação. Então, vem se abrindo, porque vem sendo escancarado um buraco, e os caras tem que ver o que é que está acontecendo, porque tem muita coisa acontecendo. Que bom que estão vendo. Vão ficar o tempo inteiro babando ovo também de quem já babam o ovo há anos?

Fala mais da questão política na sua obra.

Eu sou de esquerda, né? A gente está vivendo um momento absurdo. Ao mesmo tempo, eu sou muito desconfiada. Sou desconfiada de palavras prontas, sempre fui, de hashtags. Então pra mim é um jogo comigo mesma de eu entender como reforço os meus conceitos e o que eu acredito, que não é nesse fascismo doentio que está acontecendo no Brasil hoje. Mas me coloco. Isso transparece no como eu toco guitarra, na guitarra eu boto muito disso. Em algumas letras, que às vezes escancaram um pouco mais, às vezes menos. E a parada da mulher é muito doida, né? Compositora a gente conta no dedo. É muito importante para mim essa questão da composição e da mulher compositora e da mulher tocando também.

Quem são as suas pares?

Ah, tem muita gente. Se eu puder, inclusive, escrever, porque eu já falei e esqueci de pessoas e “cara, como eu não botei essa pessoa?”. Mas eu posso falar também, tem Raquel Dimantas, Ilessi, Bel Baroni, Maria Beraldo, Mari Romano, Anelis Assumpção, Ava Rocha…

São várias gerações, é interessante.

Sophia Chablau, que está nos 19 anos.

Quando você falou a coisa da crítica e do manifesto e tal. Tem uma entrevista com o Caetano nos anos 1970 na qual ele fala uma coisa genial: “A crítica, até os anos 1960, eram nossos contemporâneos, estavam com a gente. Eram nossos companheiros existenciais”. Então a crítica era propositiva e estava criando junto com os artistas. Daí ele fala: “Agora nos anos 1970 a crítica corre atrás, ela é reativa, ela não é propositiva mais”. Ela é reativa, ela reage à produção. Quando eu falei da crítica, eu estava falando nesse sentido, quer dizer, de um diálogo, que é conceitual, que não precisa ser o ato de fazer um manifesto, mas estar pensando criticamente, conceitualmente a música. Tem esse diálogo acontecendo?

Foi muito legal que, no Mormaço Queima, dei uma entrevista pro Lichote, no Segundo Caderno. E foi muito legal, acho que o Lichote entendeu muita coisa e colocou de uma maneira clara, que foi bom até para eu ler, sabe? E aí eu acho que começou pra mim esse diálogo, porque até então não tinha nenhum.

Você falou que passa por várias artes,  falou sobre cinema, sobre artes visuais, sobre poesia e música… Mas também rolou durante um período, sei lá, anos 1990, o isolamento das artes. O músico curtia música, o cineasta curtia cinema. Não tinha uma troca. Você tem visto uma troca maior entre as artes agora?

Tenho. Eu sou até demais. Eu preciso focar, porque senão fico querendo fazer tudo. Então é bom dar umas setorizadas. Isso eu tenho aprendido também. Porque depois eu me arrependo. É bom a gente dar um respiro. Mas eu acho que tem um pouco a ver com a questão da geração também. Porque a gente vive numa era muito imagética, com muita influência de imagem o tempo inteiro. Instagram, YouTube. Então, a gente também tem um estímulo maior a pensar um pouco mais a concepção como um todo da coisa. Eu tenho um apego muito forte à estrutura que eu estou propondo, aí vai do som ao nome, às cores que estão nela, ao que estou dizendo. Acho que é uma questão própria minha, mas eu sinto que talvez seja também um estímulo de geração.

Vamos falar do seu segundo disco, que você está gravando. Ele já é radicalmente diferente do primeiro, né?

Sim. Little Electric Chicken Heart. Quis gravar numa sala grande, som de bateria. Estava ouvindo umas coisas dos anos 1950. Estava ouvindo a Nora Ney, que foi uma pessoa importante para eu querer gravar esse segundo disco e talvez cantar de uma outra maneira. Entender os campos da minha voz, não usar o tempo inteiro um só, brincar com isso. E aí a Nora Ney foi muito importante. No processo veio vindo muita gente. No começo do disco tinha muita referência dos anos 1950.

Quando a gente escolheu os microfones, cantei os mesmos trechos em diferentes microfones. Eu sabia que eu queria sala grande e microfone de fita pra cantar com essas referências dos anos 1950. Mas quando eu escolhi o microfone, foi o RCA. Se eu mostrar a foto, vocês vão identificar com certeza. É um comprido assim, anos 1940. Eu escolhi ele e foi muito doido, porque quando eu pus a voz nele, eu falei: “Ah…”. Por exemplo, várias coisas que eu tinha botado pros músicos, como referência anos 1950, eu falei: “Esquece tudo”. Tipo, já encontrei o que eu achava que eu queria dos anos 1950, é isso aqui, o som desse microfone. E aí fui misturando.

Algumas músicas são do processo do Mormaço, músicas que eu sabia que não queria que fossem gravadas daquele jeito, tudo em cima de mim. Nesse eu queria gravar tudo ao vivo. Eu estava tocando com a banda que eu toco, que é o Antônio Neves, o Guilherme Lírio, Vovô Bebê. Estamos há um tempo juntos. Queria também gravar isso, a gente junto, tocando junto. Continuou sem click, mas só que ao vivo. As bases ao vivo. E depois fomos gravando em cima. E o doido também do processo é que no Mormaço a primeira coisa era minha guitarra e voz, e nesse as últimas coisas estão sendo a minha voz.

Estou produzindo com o Martin Scian e estou fazendo a direção musical, que teve a ver com as coisas que eu estava pensando do como propor a música, que cor é essa música. Eu levei umas coisas de cor relacionadas à cromoterapia, de botar papel de seda pra eles terem contato com a cor, passando mesmo, e sentirem a cor de uma maneira mais efetiva. O nosso show já é muito quente, então eles estavam muito acostumados com vermelho, amarelo, roxo. Isso eles já estão acostumados. O show do meu disco era sobre aquilo. E esse segundo disco tem uma onda muito mais azul marinho, cores mais terrosas, uma atmosfera que nas minhas cores não tinha. Foram com essas cores que eu quis botar eles em contato um pouco mais na hora de gravar. E aí eu deixei as minhas vozes por último. Foi interessante também de me botar produzindo e agora nesse final gravar as vozes e finalizar.

Você falou que esse disco tem outro raciocínio estético do canto. Fale mais sobre a diferença entre o Mormaço Queima e o Little Electric nesse sentido.

O Mormaço Queima era um disco de uma anticantora, e o Little Electric Chicken Heart é um disco de uma intérprete de suas próprias canções. É um disco também que eu espero que me abra portas para produzir coisas que não são minhas. Tenho gostado da parte técnica, de estúdio, quero estudar mais. Não virar técnica de som, mas no sentido de sacar e poder produzir. Tenho gostado disso.

Essa influência da cromoterapia vem de onde?

A minha mãe é psicóloga e ela trabalha com uma técnica de meditação chamada healing, que é uma meditação que não tem mantra e é toda relacionada à cor e aos chacras. Eu acho que vem muito daí e da pintura, né? Dessa coisa de sentir mesmo. Tem um livro de cromoterapia que diz que a gente ainda vai começar a ver cores que a gente não vê, e que a gente vê hoje em dia cores que antes a gente não via. Isso vai no nosso processo enquanto seres também dessa encarnação.

Esse seu lado mais espiritualizado aparece também nas suas letras?

De alguma maneira sim, porque tem a ver com minha individualidade. Tem a ver com essa antena Teletubbies, que é nossa individualidade, nosso eixo.

Sobre essa mudança de cores que você falou, as cores quentes que você muda pra ser mais azul, um pouco mais terroso. Uma outra paleta. De onde vem isso?

Da idade, do raciocínio de desenho animado indo pro raciocínio mais cinematográfico.

Você trabalha com vídeo? Pensa em fazer clipes?

Eu já gostei mais. Com 15 anos eu gostava muito de fotografia, queria ser fotógrafa, tenho um arquivo gigante de fotografias analógicas que quero organizar. Mas dei uma abandonada. Meu pai trabalhou muito com pinhole, que eram aquelas câmeras escuras, então quando pequena revelava com ele, aprendi esses processos. Recentemente, senti vontade de fazer coisas pra outras pessoas, filmar clipes para outras pessoas. Mas a minha onda com vídeo é muito mais livrona, eu fazia uns vídeos doidos e botava umas trilhas loucas. É mais por aí.

O que é o paralelismo miúdo?

É como eu denomino a minha poética de alto baixo. Tem um poema que resume isso, que é o seguinte: “o trabalho de campo engoliu o tempo da sessão de imersão na banheira da sua casa com bolhas de sabão olhando pro teto que é o chão da dona do cão que você escuta caminhar de madrugada”. É sobre isso, né? “olhando pro teto que é o chão da dona do cão que você escuta caminhar de madrugada”. Tem outro verso também que eu acho que exemplifica que é “no metrô eu penso que passo no subterrâneo perto da sua casa”. Poesia é paralelismo miúdo, eu resolvi chamar disso. Se levam a sério ou não… Mas é poesia, né? Porque é isso. Todo mundo fala a mesma coisa. Só que o lindo da poesia é que todo mundo fala de uma maneira específica da mesma coisa. Que é essa condição miserável que nós vivemos, dores e amores. O lindo é porque a gente está cada um falando a mesma coisa sempre, e no fundo, no fundo, é a mesma coisa, só que cada um de uma maneira. Aí paralelismo miúdo é como eu chamo a minha maneira de falar.

Tem alguma coisa que não falamos e você gostaria que entrasse na entrevista?

Ah, tem uma história boa, não pra entrevista, mas pra vocês saberem e terem registrada. Na música “Roxo” tem “o passeador de cachorros que parece o Lenny Kravitz”. Eu tenho dois cachorros loucos e, no Humaitá, eu sempre via esse passeador de cachorros negro, com a barba, com o cabelo na época que parecia realmente o Lenny Kravitz, e um Ray Ban. Sempre andava de Ray Ban. E eu nunca ficava vendo de perto, porque os meus cachorros são loucos. Imagina, cinco, seis cachorros, eu tenho que fugir disso. Eu vejo que um cachorro está aqui e já atravesso. É o tempo inteiro aqui, um zigue-zague. E aí ele era essa figura do meu imaginário poético, esse passeador de cachorros que parecia o Lenny Kravitz. Esse ano falaram pra ele. A mãe de uma amigona minha encontrou ele e: “Cara, você sabe que tem uma música que é pra você?”. Edinho Batista. É músico, tem um projeto com crianças, projeto musical. E ficamos amigos, ele adorou, vai nos shows, tem coisas lançadas.

E ele é uma figura que eu também ficava envergonhada de ter citado, porque eu já podia ter mostrado pra ele. Vou mostrar essa música doida? “Fala pra caralho, mas não picha igreja”, vai que ele é religioso, sabe? Vai odiar. Edinho adorou. Escreveu coisas incríveis pra mim. Conheci ele e a mulher dele numa entrevista, e ele é gato. Lenny Kravitz, né? E aí eu falei brincando na entrevista: “Edinho, me liga” de sacanagem, porque o cara perguntou quem era o passeador Lenny Kravitz. Achava que nunca iam me perguntar isso e perguntaram na entrevista. Entrevista boba. E aí eu conheci ele, e a mulher me zoou: “Olha, eu vi a entrevista, hein?”. Aí eu: “Tô brincando”. Ele levou a filha. O cara adorou, e eu ficava com vergonha. Uma frase marcante que ele me falou foi a seguinte: “Ana, eu amei demais a música e eu amo o meu trabalho, você me imortalizou”. Foi muito legal esse encontro, a gente se fala até hoje.

PARTE 2 – 2020

Queria começar com um negócio que você já falou muito, sobre a coisa do seu nome artístico. Mas fica sempre numa onda meio jocosa, da piada, e da coisa da sonoridade e tal, Fainguelernt pra Frango Elétrico. Mas numa entrevista que fiz com você há uns anos, você apontou um negócio ali que eu queria que você falasse mais detidamente sobre, que é essa questão do sobrenome, dos clãs da música brasileira.

Mais nova eu tinha mais implicância em relação a isso, ao clã e aos nomes. Hoje em dia eu confesso que não fico mais… sabe? Tá lindo. Eu já repenso também. É tudo músico, sabe? A gente não está falando de políticos corruptos ou do bilionário dono da Amazon. É músico. Mas tem a  coisa do sobrenome no sentido disso mesmo, do patriarcal, uma herança europeia e monárquica. Mas, para além disso, me guia muito a questão de ter uma liberdade mesmo, de possibilidades, de não ser eu, de diferenciar um pouco também a figura da Ana Frango Elétrico da figura eu cuidando da casa. Eu no meu afeto, eu no meu dia a dia. Me dá liberdade mesmo. De me distanciar assim.

Clara Crocodilo, por exemplo, é uma referência forte também para acontecer a Ana Frango Elétrico. Mas eu acho que é foda, porque ainda é Ana, né? Ainda sou eu, mas de fato me abre possibilidades tanto de como eu lido com a sexualidade, como eu lido com  a representação. É um animal, é elétrico, não precisa ser elétrico, pode ser um frango cozido, enfim. Mas eu sinto que me coloca possibilidades de liberdade.

Mas no palco você estabelece essa marca, essa diferença pra Ana comprando pão? Porque no palco você me parece muito próxima de você. Não tem um caráter de personagem. Então como é que funciona essa persona, essa Frango Elétrico materializada? Quando, mais do que um nome, ela é uma pessoa no palco?

Cara, eu acho que difere a sensação mesmo. Para mim é bem bruta a percepção do que eu sinto estando no palco e do que eu sinto não estando no palco. A maneira com que eu falo. Eu transcendo tocando. Eu já senti coisas muito fortes tocando. De portal mesmo. De sentir um oco completo. Já gozei tocando baixo. Em show. Então, para mim, é muito bruto, é algo que eu não experiencio na minha vida mundana cotidiana. E a persona me dá liberdade. Mesmo sem eu fazer nada, vai criando uma personalidade sobre a qual eu tenho controle e não tenho controle ao mesmo tempo.

Tem alguma coisa de construção prévia nisso? A coisa mais básica que é a escolha da roupa. Dos Los Hermanos para frente, porque os Los Hermanos vieram com aquele negócio de “a gente vai com a roupa que a gente vai para a faculdade, que é a roupa que a gente vai na padaria, que é a roupa que a gente vai num casamento, e é a roupa que a gente vai no palco”. Aquela bermuda, aquela camiseta larga e tal. Existe uma roupa de show? Existe uma questão de show para você construída previamente para além dessa coisa que a toma no palco, de estar tocando e estar sentindo aquelas coisas?

Tem super, mas eu sinto que é pelo universo que eu crio independente, que não tem a ver com o ato, com o momento do palco. Eu poderia trabalhar e ter muito mais. Mas é muita coisa de organização, então eu sei que me perco. Eu tenho amigas que trabalham comigo que são muito foda, a Raquel Dimantas, a Barbara Tavares, que a gente sempre faz alguma coisa. Mas eu ainda não consegui pensar isso com calma. Um pouco antes da pandemia, estava começando a levantar um novo show, a gente já estava ficando quente, já estava com projeções e tudo. Mas eu não sinto que eu consegui fazer isso, também porque acho que até pouco tempo a minha performance era muito mais grunge, de calça jeans e a camisa que eu estava.

Só que de um tempo para cá tenho experimentado coisas. Eu tenho questões com roupas que são muito “femininas”, sabe? Ou que performam uma feminilidade que a gente engole. E aí eu tenho muitas questões e fico muito desconfortável. Eu sei que, me incomoda muito fazer isso estando desconfortável com o meu corpo. Então, entre estar muito desconfortável com uma roupa que chame a atenção no palco, eu prefiro estar de uma maneira despojada que eu me sinta confortável.

Você tem uma coisa de não se levar a sério. Isso parece compor um pouco do seu trabalho.Mas quais são suas pretensões artísticas? Sua arte passa por um despojamento pensado? Ou você meio que vai levando, vai vendo onde vai dar?

Eu comecei a compor com 16 anos, comecei a gravar Mormaço Queima com 18, lancei com 20. Com 21, lancei Little Electric Chicken Heart e agora estou com 22. Dos meus 16 para cá é muito pouco tempo, mas é muito tempo ao mesmo tempo. Então, eu sinto que mudou muito a maneira com que eu toco, a maneira com que eu componho, sobre o que eu escrevo, como eu escrevo. E antes, no começo, por exemplo no Mormaço Queima, dentro daquela onda, que é uma onda específica de composições, eu tinha muito mais do que aquilo que está no disco. Eu não acho que em nenhum momento eu deixei de ter filtro das minhas coisas. Eu me ouvia muito, sabe? Eu ouvia muito as coisas que eu fazia.

Mas eu acho que eu não tinha uma pretensão de fato do tipo “caraca, eu vou cantar muito” ou “esta música aqui vai ter que ser uma canção que vai ganhar o festival”. Eu estava cagando para isso. Eu queria fazer. E eu fazia de uma maneira que era muito natural, porque eu não sabia que acordes que estava tocando, não sabia nada. Eu fazia uma coisa e sentia também como se ela quase não fosse minha, e queria botar para o mundo.

Já hoje em dia eu sinto que eu sou muito pretensiosa, eu me levo muito a sério. É colorido, é Frango Elétrico, mas não tem nada de bobo. Eu me levo muito a sério e eu tenho muita pretensão, eu tenho 1001 pretensões. Mas, de fato, não faço só porque eu quero isso, eu quero aquilo. Eu faço porque realmente eu gosto muito de fazer. Eu amo fazer isso, eu amo mexer as minhas mãos, é natural em mim. Mas a partir do momento que eu quero fazer isso, eu sou pretensiosa, sabe? Só que é numa piada.

Durante a gravação do Little Electric Chicken Heart, por exemplo, quando era foda, alguém que estava gravando um solo, de alguém que estava gravando a base, quando era bom, eu falava: “É Grammy. É Grammy, porra. É Japão, é Grammy”. Sabe? É brincadeira, mas é verdade. E é simbólico também, porque não é o Grammy, é a chegada em outras coisas, é chegar no Japão. Nessa figura que é engraçada e que é colorida, eu me levo muito a sério, eu sou perfeccionista dentro do meu caos. E se acho ruim uma parada que eu fiz, sofro horrores. Tem uma coisa que eu acho que tem a ver com o fogo mesmo, de querer fazer e de ter um gás na feitura.

Você começou a estudar música muito cedo. E aí, quando você compõe, você fala a coisa de não saber: “ah, não sei que acorde que é”.  Eu queria que você falasse dessa sua relação com a música, com o estudo da música em si e como é que ele entra na sua composição. Essa coisa de saber, por exemplo, os caminhos da canção, os caminhos da música, que é uma parada que você certamente não segue, mas eu queria saber se você sabe, o que você domina disso.

Como eu estudei criança, com certeza isso me trouxe muitas coisas independentemente de eu lembrar delas ou não. Mas eu acho que eu tenho uma relação que é com a prática criativa de ficar tocando, fazendo. Pô, tem várias músicas minhas que eu sentia que depois que eu pegava ela e conseguia tocar, eu avançava muito no meu instrumento. E agora, compondo coisas no piano, sinto isso também. Tem uma peça de piano que eu estou fazendo há quase um ano e eu lembro de penar muito para tocar. E aos poucos vai indo. Então, eu sinto que a minha prática vem muito com o exercício da canção.

As rupturas para mim são naturais. Sei lá, “Se no Cinema” tem quatro momentos de canção. Tem uma introdução, que evoca certos estilos, certas épocas, depois tem uma parte A que já é outra coisa. A canção vai se construindo em blocos. E eu sinto que esses blocos eu fazia de uma maneira bem natural. Hoje em dia eu acho que eu já componho de uma outra maneira. É isso. Há uns dois anos eu comecei a estudar baixo para tocar com o Marcelo Callado. Eu não tocava baixo, e aí no baixo eu fui estudando e entendendo coisas de harmonia, de acordes, que eu já tocava, mas que eu não sabia, e aí eu fui entendendo. Hoje em dia eu sinto que já entendo de uma forma diferente da que eu entendia há quatro anos.

Vi um show seu menor, no Sesc, pouco tempo depois vi um show maior no Circo Voador… Você acha que sua carreira deu um salto, estourou rápido? Dos shows pequenos pro Prêmio APCA, como é que foi isso pra você?

Eu não sinto como um estouro, nem um pouco. Eu sinto que eu vi esse show começando a lotar na casa pequena, e aí fazendo duas sessões, aí conseguindo encher lugares médios, eu abrindo em lugares grandes. Então eu não sinto que de uma hora para outra. E também isso, eu não comecei a tocar em palcos gigantes. Então, eu não sinto como estouro, eu sinto como etapa.

Eu não tenho muita mão para entender essas coisas. O Mormaço Queima, por exemplo, eu achava que ele era muito doido, eu ainda acho que ele é um disco doido, mas que, por exemplo, ele foi muito mais abraçado do que eu esperava. Já o Little Electric eu acho que eu tinha um desejo… Apesar de em termos de poética, de letra, às vezes as minhas coisas não serem tão clássicas. Mas ele tinha um desejo de conversar mais. De pegar mais sorrateiro ali, então eu acho que ele também tinha esse objetivo. E aí eu acho que, por consequência, chega em mais gente.

Você num determinado momento da sua vida parou de se interessar por música. Por que é que música parecia um troço não tão legal?

Não é nem que não parecia legal. Eu acho que outras coisas pareciam mais legais. Tipo assim, eu queria pintar. Talvez eu tivesse mais desejos com a pintura ou com outras manifestações artísticas. É isso. Não me achava uma puta cantora, as composições eram também esquisitas. Então, não tinha esse objetivo de ser uma grande música. Não tinha nem um pouco isso.

Mas, ao mesmo tempo, quando eu comecei a compor, começou a vir um pensamento de, tipo, “caraca, que negócio é esse que eu estou aqui fazendo?”. Depois de ouvir Arrigo Barnabé, depois de ouvir Itamar Assumpção, isso me deu outra perspectiva da canção, comparada a grandes nomes que eu amo e que me influenciaram muito e que ainda influenciam, como Gil, Caetano, Jorge Ben. Juntou muitas coisas e eu comecei a pensar que, cara, como assim não dá mais para expandir? Tudo dá para expandir, reduzir, puxar. Que doideira é essa de falar que tudo já foi dado? Porque a gente está aqui vivendo ainda, são outras coisas em jogo, outro tudo, outras tecnologias, outros meios.

Você era criança ainda quando o Chico Buarque falou a coisa do fim da canção, né? Aproveitando: que tipo de criança você era?

Sabe aquela mistura de levada com tímida? Eu jogava muito de jogar bola. Eu cresci na Equitativa, em Santa Teresa, e tenho memórias muito incríveis da minha infância. Minha infância realmente… Ah, eu sou eu criança, sabe? Gostava muito de jogar bola, estava sempre com os moleques, andando sempre com muito homem. É isso. Eu gostava de jogar bola, gostava de praça, bolinha de gude, qualquer coisa na praça. E era uma criança super carinhosa também. Dedicada, na minha, mas agitada no querer fazer coisas de brincadeira. Eu lembro de brincar muito pouco de boneca.

Tive um hamster doidíssimo, Hamtaro, que abria a gaiola e aí grandes histórias. Os dos meus amigos morriam em meses, sei lá. O Hamtaro viveu quase quatro anos. Companheiríssimo, muitas histórias com o Hamtaro. A minha cabeça é muito a Equitativa. Eu me lembro disso, de gostar de bola. Aí é isso, eu não queria fazer música. Eu queria jogar bola.

Você via futebol? Qual é seu time?

Assistia. Eu sou botafoguense. Mas o Botafogo me conquistou, nem sempre eu fui botafoguense.

Você era o que antes de ser botafoguense?

Eu já fui uma flamenguista real. Mas sabe o que acontece? É que a minha mãe é muito botafoguense e uma grande amiga da minha idade, que é a Lorena, tem os pais que também são botafoguenses. Então, teve uma época que eu ia com eles aos jogos, mas ia sem ser botafoguense. E acho que o Botafogo tem muito a ver comigo, esse negócio de superstição, de sofrer. E aquele negócio, até o último segundo está preocupado de levar um gol. Ir sempre com a mesma meia, sabe essas coisas? Aí o Botafogo me conquistou. Mas nem sempre eu fui botafoguense.

O Equitativa é um condomínio ali em Santa com o maior vistão pra mata, mas ao mesmo tempo ele é coladinho na comunidade, e as pessoas da comunidade costumam frequentar, atravessar aquele condomínio. Como foi sua relação de menina de classe média, morando num  condomínio desse, que tem muitos artistas plásticos, mas também tem muita gente que não tem nada a ver com essa história toda, gente da comunidade. Você se relacionava? Você escutava o que acontecia naquele entorno?

Totalmente. E, principalmente na época que eu cresci, foi um momento da Equitativa que era muito plural. É isso, eu lembro de ser muito movimento. Nossa, total. Eu cresci jogando bola com os moleques do Morro dos Prazeres. Eu brinco que a Equitativa é um não Estado para mim, sabe? Ninguém manda lá direito. Tem épocas que é o morro, tem épocas que é o governo… Mas é um lugar muito doido e muito lindo. Eu acho que fez o meu caráter. Eu falo muito com as pessoas, eu amo gente. E aí a Equitativa é isso. Eu moro no Humaitá hoje em dia. E é muito diferente morar aqui. Eu não cresci aqui, eu não me sinto tendo crescido aqui. A minha criação não tem nada a ver com isso aqui, com essa dinâmica daqui, da Zona Sul.

Mas, num certo sentido, a música que você produz reflete muito essa Zona Sul. Queria que você falasse disso, dessa maneira de você reconhecer se sentindo um pouco fora disso, mas ao mesmo tempo dialogar tão intensamente dentro disso. Inclusive o Mormaço Queima traz cenas do Humaitá, cenas da experiência de quem vive ali, do metrô e do passeador de cachorro etc.

Principalmente no Mormaço, tem um sarcasmo dentro disso. Tem uma saturação cômica disso. Eu acho que, para mim, talvez seja isso. Já o Little Electric Chicken Heart, por exemplo, sou eu tendo acesso e reconstruindo e entendendo as minhas memórias, da minha infância também. E de ir muito para São Paulo, de estar viajando mais e de estar tocando e de estar trocando. E a questão da internet, de você conseguir trocar com muita gente que está longe e receber muitas coisas.

Como você se aproximou das artes?

O meu pai é professor e artista plástico e na minha infância eu lembro muito dos ateliês dele. E ele trabalhava na época com materiais mais pesados, como bronze. Ele trabalha com restauração também. Materiais de gesso, bronze e tal. Então eu lembro de cheiro. E eu acho que é o cheiro que me traz muito até hoje desejo de produção artística. Eu amo cheiro de tinta, amo cheiro de madeira cortada, amo cheiro de material. Mas, assim, de experiência estética eu não lembro muita coisa. Lembro, por exemplo, com 10 anos, de fazer uma música para um menino que eu gostava. Uma música hilária, eu lembro um pouco dela até hoje. Meus amigos morrem de rir com essa música. Era meio pop Disney.

Era involuntariamente hilária ou você fez para ser engraçada porque o seu jogo da sedução passava pelo humor?

Não, ela era de amor. Era tipo assim: “abro a porta e sigo uma estrada, olho o céu além da madrugada e eu penso em você”. Era seríssimo, mas hoje em dia eu acho hilário.

Mas você mostrou?

Para ele? É meu amigo, é meu amigo demais, o Antonino. Ele adora a música, imagina, ficou até emocionado.

Mas você mostrou na época? Na época você chegou a mostrar?

Não, acho que na época não. Devo ter mostrado depois, já rindo.

Depois você voltou a compor mais velha, né? O que disparou a coisa da composição? Qual foi a primeira música?

Eu tinha e tenho essa banda chamada Almoço Nu, a gente tocou em sarau de colégio e primeiro começamos tocando covers. Tocávamos Milton, Gil. E depois, a gente começou a compor. Eu lembro do Grabois e do Ivo levarem uma música que já tinham feito. E aí fomos vendo. Ali eu acho que foi total um botão de motivo. As primeiras canções que compus mais nessa faixa etária dos 16, 17 anos eram para essa banda, pensando nessa banda. E aí depois começaram a vir outras canções que que eram outra coisa e que depois eu fui entendendo como Ana Frango Elétrico.

Mas qual era a diferença de linguagem que marcou mesmo o nascimento da Ana Frango Elétrico?

De uma maneira mais grossa de falar, eu acho que a Ana Frango Elétrico seria mais grunge e Almoço Nu seria mais rock baião. É claro a Ana Frango Elétrico tem outras mil coisas além do grunge, assim como o Almoço Nu também tem outras mil referências. Mas de uma maneira mais grossa, assim, eu acho que a gente poderia botar essas energias em ambos. E eu sinto que eu ficava muito ansiosa mesmo, eu tinha uma parada de querer fazer, de querer deixar alguma coisa. Uma pressa de alguma coisa que não tinha pressa. O que vai levar também a eu querer gravar tão nova um disco. O meu canal de criação naquela época era muito aberto, é espiritual mesmo. E sem podas. Então eu queria registrar aquilo, porque sabia que depois iria mudar e eu não iria querer mais tocar aquelas canções.

Como foi sua descoberta da MPB?

Eu lembro de gostar muito de Tribalistas e Gil quando eu era criança, por causa da minha mãe. Eu me lembro da minha mãe ouvindo. Mas não ouvia só MPB. Ouvi muito o começo da Lady Gaga, ouvi muito Amy Winehouse, gostava muito da Amy Winehouse. Eu esqueço de falar, mas a Amy Winehouse é uma grande influência para mim. Aí eu lembro de ser muito marcante, ali talvez nos meus 10, 11 anos, o Acabou Chorare. E mais para frente eu vou descobrir, por exemplo, o Ferro na Boneca, que hoje é o meu favorito dos Novos Baianos. Eu já gostava de Transa, do Caetano Veloso, mas vou descobrir o Transa fumando maconha. Vou descobrir o Caetano de 1969, que é aquele álbum branco, que talvez seja o meu preferido dele. Mudou a minha vida esse álbum, com certeza também é grande influência para mim. Força Bruta, do Jorge Ben eu ouvi incansavelmente. Eu realmente choro.

O que a emociona no Força Bruta?

Força Bruta acaba comigo. “Zé Canjica” eu choro. Nossa, Força Bruta eu acho incrível, tem um negócio que realmente mexe muito comigo. E aí vou descobrindo depois a Vanguarda Paulista, vou descobrindo pela internet coisas. Música gringa. Eu com 10 anos gostava muito de pop Disney, essas coisas de ver na televisão, Hannah Montana e tal. Mas, por exemplo, eu lembro de uma grande amiga minha, a Lorena, uma época ela super ouvindo rock dos Estados Unidos. Rock clássico dos anos 1960, 1970 e rock do que rolava mesmo na época. Uns heavy metal e tal. Eu nunca curti muito. De rock dos Estados Unidos eu ouvi muito pouco, tenho muito pouco isso de influência em mim.

Depois, fui ouvindo jazz também sozinha e me encantando muito, cada vez mais apaixonada pelo jazz. E por pop de câmara. Por exemplo, Burt Bacharach, Quincy Jones, que foram influências muito grandes para o Little Electric Chicken Heart. Nora Ney também. Já no Mormaço Queima eu comecei a de repente gostar de umas coisas, de uma atitude mais grunge em algum lugar e, ao mesmo tempo, gostando de bossa nova também.

Como é que Nora Ney te leva para o LECH?

Eu já tinha um nome na minha cabeça de ser Little Electric Chicken Heart. E tinha, por exemplo, a canção “Se no Cinema”, que tem um tema que poderia ser de sopro, poderia ter cordas. Eu acho que o Little Electric Chicken Heart é um disco que poderia muito bem ter muito mais coisa inclusive do que ele tem. Apesar de ter muita coisa. Mas eu não achei que precisava, porque não acho que a gente tem que entregar tudo o tempo inteiro. Mas queria muito entregar os sopros, um som de sala grande.

O que me atraiu muito na Nora Ney foi começar a ouvir um som que era de uma bateria longe. Um som de sala, um ruído de microfone. Ela sofre. Para mim, é a Edith Piaf brasileira. Eu lembro de no começo ter uma onda que era para mim um certo sarcasmo também. Fazer uma produção de um álbum que fosse claramente para uma cantora, para uma intérprete, sendo que era eu que estava produzindo e era eu que estava cantando também e era eu que era a compositora. Fiz com muita gente, produzi ao lado do Martin Scian.

Mas tinha essa intenção na produção de fazer um negócio chique para uma intérprete. Só que é uma intérprete de mim mesma. Eu me permiti pensar como intérprete. Porque eu acho que já que eu também já tinha feito uma coisa que era o oposto disso, que foi o primeiro disco, onde a interpretação é totalmente despojada, agora eu podia fazer algo inverso, mais pensado.

Você cresceu nos anos 2000. Tem alguma influência do indie, de bandas como Tame Impala? Também queria saber se você tem influência de bandas lésbicas, como Tegan and Sara.

Eu ouvi Tame Impala, ouvi Black Keys, ouvi pouco, mas ouvi Arctic Monkeys, ouvi Phoenix. Essas são as minhas influências daquele indie ali 2012. E Mac DeMarco também tem bastante influência sobre mim. É muita coisa.

Suas melodias têm caminhos inesperados. Isso é intencional, você as direciona pra esse lugar ou elas saem desse jeito naturalmente?

Minha pesquisa vem cada vez mais sendo sobre a melodia. Sobre harmonia e melodia. Sobre a sensação daquela nota naquele acorde, essas sensações que eu gosto muito. Então, cada vez mais eu acho que é mais controlado, um estudo, uma prática ali na melodia em busca do que eu acho bonito, do que me emociona, do que eu acho ácido, do que eu acho alegre, do que eu acho triste e do que eu estou precisando ali para fazer um trajeto. É isso, eu acho que o projeto Little Electric, eu lembro de estar finalizando ele, então eu já tinha uma música de começo, já tinha o título, já tinha para onde eu queria ir em termos de influências.

Eu tenho feito cada vez menos letra. Mando melodias para parceiros, para finalizar as músicas. Tenho tido cada vez mais delicadeza e mais cuidado e paixão pela melodia, por essas sensações que realmente vão na alegria, na tristeza, na acidez, na surpresa. Enfim, sensações. É lindo, eu amo muito. Que é canto, né? Porque quando a gente está falando do jazz, dos instrumentos de sopro ou, por exemplo, de um Quincy Jones ou do Burt Bacharach, as canções lá acontecem e não precisa ter ninguém cantando. Então a melodia é um canto. É uma narrativa emocional. Eu sinto assim um pouco a melodia.

Muitos grandes compositores falam que a melodia é o coração da canção. O Ronaldo Bastos, que é letrista, fala isso,  o Caetano tem aquele verso que diz: “Acima da rima, a nota da canção”.  Acima da letra, está a melodia. Então essa ideia de pensar a melodia desse jeito, sei lá, está bem respaldada. Mas é engraçado que a afasta de uma parada, que é a sua poética.

Mas eu sinto que como a minha poética é muito definida nos meus dois discos. Eu sinto que quando eu mando uma coisa, às vezes o parceiro manda até mais próximo do que eu queria para a minha poética.

O Mormaço tem uma estrutura diferente do Little Electric Chicken Heart. Em termos de sonoridade, como é que você define cada um?

O Mormaço eu tenho que é uma bossa pop rock decadente, com pinceladas punk. O Little Electric Chicken Heart eu não tenho um jargão que me veio, mas para mim é um rock balada jazz pop de câmara.

O que a atrai no jazz atualmente? 

Eu estava ouvindo bastante Thelonious Monk, Emily Remler, Wes Montgomery. Então eu acho que é um apreço mesmo que eu acho que tem a ver com a pesquisa da melodia, da harmonia, descobrindo coisas que eu acho muito bonitas e desenvolvendo isso na minha canção e na minha pesquisa.

Além das pesquisas musicais, tem a coisa de estar viva. Uma mulher de 22 anos, Rio de Janeiro, Brasil, Bolsonaro, pandemia. Todas essas questões que a gente está vivendo e você se manifestou de maneira muito mais clara,com um discurso mais focado em termos de se saber nesse lugar, no seu segundo disco. Como é que é isso para você e como é que isso se reflete na sua música?

São duas questões: uma coisa é se manifestar politicamente enquanto pessoa, seja nas redes ou na vida, no nosso cotidiano. A outra é se manifestar artisticamente. Eu não tenho canções políticas e fico pensando, será que deveria me manifestar na minha música também? Ou será que essas possibilidades poéticas, artísticas em geral, que estou trabalhando não são políticas também? Não são também questões importantes para serem levantadas?

Enfim, eu sou jovem, estou ainda me entendendo. Entendendo a minha sexualidade, o que sou, o que não sou. Estou namorando uma mulher agora, então as questões do movimento lésbico, do movimento sapatão, têm me atingido cada vez mais. Independente de já ter me apaixonado por mulheres ou ter namorado homens. E não me sinto, a Ana, uma mulher na música. Eu acho que essa é uma prerrogativa branca. Não sinto que esse papel de mulher na música me contempla. Eu penso muito a não-binariedade como tema também. Estou me entendendo ainda, não sei quem sou ainda.

Mas o meu trabalho é um trabalho aberto quanto a isso. Quanto a minha experiência estética, sensorial, sexual. E daí a gente está falando de cor, está falando de sabor, está falando de amor, de tudo.

Você fez essa afirmação de ser uma mulher na música, que isso não te interessa tanto. Eu queria que você explicasse melhor um pouco a sua posição nesse sentido, porque essa é uma questão quente.

A gente quer que cada vez mais se tenha mais mulheres na música, na produção musical, na parte técnica, em tudo. Mas acho que quando a gente está falando sobre isso, às vezes, eu sinto que cai num discurso de uma maioria de mulheres brancas. Principalmente ali quando querem colocar num lugar de nova MPB. Está falando de mulheres brancas, mulheres cis, mulheres produzidas por homens. E aí o que eu estou levantando é isso. Facilmente essa questão da mulher pode cair para um feminismo que é colonialista. E aí é isso: eu tenho questões com ser mulher, então acho que esse é o principal motivo. A definição de mulher não me contempla, não contempla a minha sexualidade e a minha maneira de me relacionar, de existir, de me sentir. E fora isso, de que mulheres a gente está falando, né?

Quando você fala do não-binário, já contempla, né? Você se vê como uma pessoa não-binária? Há uma coisa muito forte do não-binarismo na sua geração.

Eu acho que amigues me trouxeram muitas questões que me contemplam, relacionadas à questão de gênero desde criança. É muito doido como, por exemplo, agora estando num relacionamento sério com uma mulher, como eu sinto muito diferente a questão, por exemplo, de representatividade em filme. Fico com raiva às vezes de umas coisas hétero. Eu não sentia isso. E fico com raiva, não quero ver. Tipo “bagulho hétero do caralho”. Não quero ver isso. E aí é muito interessante quando a gente vai entender isso e pensar sobre isso sendo branca, de classe média. Entender o quanto é forte e necessária a questão da representatividade em todos os campos. É esse negócio, é um ódio, essa raiva que é simples e cotidiana de, tipo, “porra, que bagulho hétero e chato”. Que vem de uma coisa que eu não quero para a minha vida.

Há também a questão da representatividade bi, porque a gente tem aí até um leque maior de filmes e mídias lésbicas do que bissexuais. Você tem esse pensamento sobre ser bissexual? Você se considera bissexual?

Eu não me entendo como bissexual, porque eu não me entendo. Eu não me sinto demarcando agora o que eu sou, mas eu não me sinto mulher. E aí nesse caso eu acho que a Ana Frango Elétrico me contempla. Não é que eu não me sinta Ana, eu acho que eu me sinto Ana, mas por que é que Ana tem que ser uma coisa? Então, cada vez que me perguntam mais porque é Ana Frango Elétrico, eu penso: “por que não?”. A questão da bissexualidade eu não me enquadro por questões não-binárias. Porque eu acho que quando a gente fala bissexualidade, a gente está já criando questões binárias em si.

Eu acho que de repente também a pansexualidade talvez me contemple mais, porque é uma questão de gostar de pessoas. É isso, eu acho que a gente quando gosta do homem, a gente não sai gostando de qualquer homem que a gente encontra. Quando a gente gosta de uma mulher, a gente também não gosta de qualquer mulher. Acho que eu sou aberta a pessoas, a pessoas não-binárias, a pessoas trans, a pessoas-pessoas.

Mas neste momento estou num relacionamento com uma mulher, e a partir do momento em que a gente está num relacionamento com pessoas, a gente cria coisas para a nossa vida como possibilidades. Por exemplo, eu sempre quis ser mãe em alguma medida. É a primeira vez que eu considero não parir. Por que é que só aos meus 22 anos eu considero não parir? Não precisa parir para ser mãe, para ser pai, para ser pãe, sabe? Pensar essas possibilidades.

E aí é que está sendo muito interessante essa percepção que estou tendo agora, de pensar: “Caraca, esse negócio é muito hétero, esse negócio é muito branco, esse negócio é muito cis”.

Que tipo de parada você tá falando?

Pô, eu queria ver um filme lésbico. Um filme de amor. Eu queria ver um filme bobo, romântico, que fosse lésbico. Não tem um negócio bobo e lésbico, não? Não tem um negócio bobo e gay? Não estou falando que não tem, mas é pouco, difícil de achar. E aí vendo algumas coisas tem uma hora que dá raiva.

Voltando pro Little Electric Chicken Heart, eu queria que você falasse um pouco do que você pensava para ele em termos de sonoridade na hora em que entrou no estúdio e o que virou durante a gravação. O que mudou no caminho?

O Little Electric, antes do som, ele tinha uma questão que era um pouco de afirmação de mim como artista. E o disco tinha uma coisa que ainda tinha um amarelo e um vermelho do Mormaço Queima, mas que tinha um azul marinho, que tinha umas coisas que é mais profunda, mas que é na cara ao mesmo tempo. Tinham os coros, tinham os sopros. Aí eu acho que as coisas vão mudando quando vão entrando os elementos e vai organizando a sala. Havia uma ideia, mas daí durante a gravação a gente foi descobrindo como realizar. 

Eu direciono muito com textura, hoje em dia com termos mais técnicos também. Mas ainda assim a primeira coisa para mim é a sensação, onde é que está essa sensação que me interessa passar. E aí pegou em muitos lugares que a gente queria e chegou em lugares que eu não imaginava também. É uma mistura dos dois.

Teve um trecho de um poema do Maiakovski que ficou muito na minha cabeça durante a produção: “A todas vocês, que eu amei e que eu amo, ícones guardados num coração-caverna”. Esse trecho foi super importante. Tem um verso de uma poeta norte-americana, a Marie Ponsot, que também eu gosto muito: “Coração, seu valentão bandido”. Que é “heart, you bully, you punk”. E aí eu acho que tinha esse propósito um pouco do coração que sofre, mas que é feliz. Que é galinha, que cabe muita gente. E que tem essa coisa do paralelismo miúdo, né? Que é uma coisa pequenininha, mas que é gigante ao mesmo tempo.

Tem uma canção especialmente forte no Little Electric, que é “Torturadores”. Fala um pouco dela.

É uma canção que veio como poema, depois eu musiquei, harmonizei no violão. E é uma canção que eu fiz depois de ouvir uma história de uma pessoa que encontrou o torturador dela da ditadura militar no supermercado. E aí eu fiquei muito com isso na cabeça e, enfim, eu acho que é sutilmente sobre ela. Lembro de no colégio quando vi vídeos sobre a Comissão da Verdade e sobre escracho popular. E aí o fato de uma pessoa encontrar o torturador, ele não lembrava obviamente dela, ela lembrava dele. Ela entrou em depressão depois, enfim, o que gerou isso, esse encontro. E aí eu fiquei pensando muito nisso, de uma maneira que é cinematográfica, de estar vendo coisas. O rabo do lagarto, eu estava vendo um lagarto sem rabo, que depois cresce. E os carros de polícia têm nomes sempre.

Enfim, pensamentos poéticos que eu estava tendo e pensando sobre escracho popular, sobre essa parada da pessoa velha, desse pano que a gente passa, que o velho é sempre bom. Mas quem são esses caras que eram os torturadores perversos? E aí eu acho que tem contextos que são, por exemplo, eu acho que o ônibus com ar condicionado, mais do que qualquer coisa, ele é num sentido de contexto histórico, de data. De quando se está falando.

Eu inclui o porteiro pelo sentido simbólico. O abrir a porta é simbólico, é forte. É um trabalho para o cara, e tem a ver com educação. E você está abrindo e nem sabe que está abrindo a porta para um torturador, né? O neto também, num sentido de que a gente coloca os nossos avós como fofinhos e tal… É isso. Esses torturadores hoje são pais, são avós. E podem parecer fofinhos, mas são torturadores. É sobre isso.

Você está trabalhando num disco que chamaram você para gravar em Nova York.

Como foi caminhando a recepção do seu

trabalho lá fora?

O Mormaço Queima já teve uma atenção dos gringos. Então, teve algumas trocas internacionais a partir do primeiro disco. E aí, com Little Electric, eu acho que a virada de chave foi quando aquele crítico, o Anthony Fantano, escreveu. Ele não foi o primeiro gringo a escrever, eu acho que, inclusive, ele conheceu a partir de coisas menores que tinham escrito, blogs de rádios. Mas com ele, de fato, fez assim, um “tchuf”. E aí estou vivendo isso.

No caso de Nova York é da EMI Records, uma parceria. Não é uma residência, mas é quase, no sentido de que eu vou para lá gravar uma semana com músicos incríveis de lá. Já tem nomes, mas como não é confirmado, não adianta falar, não sei direito. Mas enfim, não sei nem quando eu vou conseguir entrar lá, vai ser em 2021. Uma perspectiva meio doida. Mas é isso, gravado tudo analógico para vinil, mixado e masterizado também em analógico, com uns músicos de jazz absurdos. Meio surreal. Mas tomara que role em vários lugares isso. Eu acho que seria meu objetivo, cada vez mais estúdio mesmo.

O que está na sua cabeça com esse disco? Qual vai ser a cor?

A cor dele eu ainda não sei, sabia? É porque eu estou produzindo dois singles ainda, que eu acho que trazem coisas. Um vai sair no final do mês e um vai sair acho que mais para o final deste ano de 2020. Mas eu acho que ambos são… tem vindo mais um rosa e um verde para mim. Mas o disco eu ainda não sei direito, estão me vindo umas cores até mais bege, mais preto e branco, prateado. Mas já tem nome, já tem coisas, mas aí isso eu não vou falar, gente, porque não sei ainda como será.

A gente falou um pouco de influências, mas quem está te interessando da galera mais perto de você, da sua geração?

Talvez mais até do que, por exemplo, Itamar e Arrigo, quem realmente mudou minha vida foram Negro Leo e Ava Rocha. E que ainda mudam e que respeito e amo muito. Se eu pudesse escolher padrinhos musicais seriam eles. Se coubesse a mim. Tenho trocado com Ava na quarentena. Ela me mandou uma letra, o meu segundo single que vou lançar é uma parceria de nós duas. Eles são pessoas muito importantes para mim. Mas é isso, fora isso, cara, é muita gente. A gente está num momento surreal de coisa boa, rolando muita coisa.

Você falou uma história lá no início, que você gozou tocando baixo.  Onde foi isso? Como foi isso? Que música?

Foi na Audio Rebel, com o Grupo Conjunto, que é um grupo que a gente fez. Eu, Caio Paiva, Marcelo Callado e Arthur Bittencourt. A gente se apresentou duas vezes. e eu tocava baixo. E, caraca, foi uma experiência muito doida. No palco da Rebel eu já vivi algumas experiências doidas assim. De também estar tocando e, tipo, sentir uma bola roxa em torno de mim. De, vrum, tudo parar, sabe? Quando o tempo faz realmente assim, tchuf. Palco é muito incrível. Palco é um altar mesmo, é muito poderoso.

Como você se relaciona com o lado espiritual?

Eu acho que a minha espiritualidade, assim como a minha sexualidade, ainda está muito indefinida. Eu me sinto muito perdida, mesmo. Mas me sinto muito religiosa ao mesmo tempo. Eu me sinto pensando em Deus cada vez mais e falando Dele, independente do que é Ele. Mas ainda acho que espiritualmente, por exemplo, eu vou me descobrir mais ainda. Mas eu sinto que, por exemplo, eu acesso lugares dos pontos energéticos, de meditação, que são pontos religiosos do nosso corpo, os pontos cardeais do nosso corpo. Eu sinto que quando eu estou cantando, quando eu estou gravando, quando eu estou no palco, eu me conecto muito com eles conscientemente. Intenção é fé para mim, em alguma medida. E a questão das cores também, é um lugar cromoterápico religioso para mim. E aí eu acho que tem questões com pontos da individualidade, pontos do coração, o hara, pontos de meditação que eu me conecto no meu trabalho. E que me ajudam e que eu sinto como ferramentas que me ajudam a fazer tudo. A me conectar, a me expandir e a me concentrar também.

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