Entrevista realizada por Renato Rezende e Teresa Arijón, e publicada originalmente no livro Heloísa Teixeira – Encontros, em 2019.
[Teresa Arijón] Começando. Hoje é 16 de setembro de 2017.
[Renato Rezende] Então, essa entrevista é para aquele livro da Encontros que a gente quer fazer, né, Helô?
Sim, senhor.
[Renato] A Teresa me falou que você queria ter sido arquiteta.
Sempre quis. Olha o PACC. Eu penso primeiro o espaço, depois o projeto, isso sempre foi assim. Por isso o PACC tem o espaço aberto com só uma mesa de trabalho para todo mundo. Sem hierarquias, nem personalismos. O desenho do PACC só permite colaboração e compartilhamento
[Renato] Por que você não fez arquitetura?
Porque não me ocorreu na época, e meu pai queria tanto que eu fosse uma professora, que acabei sendo e certamente não era o que eu queria.
[Renato] Você não quiz ser professora?
Você não percebe que a minha carreira inteira foi, desde o começo, fugir dessa posição? Eu gosto de organizar espaços, e é o que eu faço na realidade. Na produção intelectual, na produção acadêmica, mesmo nas aulas. Tudo isso é arquitetura. Eu faço arquitetura triste, porque eu não vejo o concreto aparente. Mesmo meu conceito de academia é um conceito de espaço. Isso sempre foi assim, desde o começo qualquer espaço acadêmico que eu organize é sempre sem espaços individuais, é sempre uma coisa de troca.
[Teresa] Quase como todos os seus livros, também.
Sim, meus livros também são organizações de espaços, o espaço marginal na arquitetura, agora só as mulheres…
[Teresa] Fala das mulheres, do seu renovado interesse.
Eu sempre fui muito ativista. Em 1960 eu estava no CPC, estava em movimentos estudantis, mas ainda não focava a questão esepcífica da mulher. Militei mais por raça do que por gênero inicialmente, Mulher não estava no meu horizonte nos anos 60.
[Renato] É engraçado, porque o feminismo era uma pauta internacional.
Era uma pauta, mas uma pauta meio complicada, porque estavamos em plana ditadura militar e a luta era de oposição ao regime. Inclusive a Igreja catóica era uma aliada importante nessa luta. Haviam as comunidades eclesiais de base, a Juventude Católica, a Juventude Operária Católica, enfim a ligação com o clero progressista era fundamental. Pautas internacionais como sexualidade e aborto, por exemplo, promoviam um conflito de interesses com a aliança católica violenta. Esse tema do corpo só aparece depois da redemocratização e, agora, pegando fogo. Era um silêncio de alguns temas mas que não foi, de maneira alguma, silêncio: os movimentos de mulheres nos anos 60 aqui foram muito interessantes, mas eram todos em questões de direitos de trabalho, direitos de família, violência contra a mulher, lutas por crèche, saude reprodutiva etc… Tivemos uma estratégia genial que foi o uso da mitologia que envolve a maternidade (e que o feminismo tentava desconstruir). As mulheres se apropriaram dessa figura, em princípio uma figura tradicional, intocável, e foram para as ruas reclamar o desaparecimento de seus filhos. Impossível prender uma mãe que procura seu filho. A figura da mãe como um suporte possível para uma denúncia, para lutas. Nessa época eu me sentia também muito confortável como mulher. Entrei na academia provavelmente pelo exemplo de meu pai, medico e director do Instituto de Pediatria da UFRJ. Fui estudar Letras Clássicas, e fui trabalhar na UFRJ. Na academia eu fazia bem o que eu queria, porque eu nunca me encaixei, eu nunca fiz uma carreira acadêmica, eu nunca tive esse encanto pela carreira acadêmica. Era independente professional e financeiramente.
[Renato] Na verdade a questão do espaço, você foi quebrando paredes… Não é?
Exatamente, a minha carreira acadêmica foi toda arquitetônica.
[Teresa] E a sua mãe?
A minha mãe era mãe. E era uma princesa que meu pai amava muito, e eu assistia meio enciumada. E resolvi virar meu pai, virei professora, mas não adiantou porque eu não me sentia bem nesse lugar. Minhas aulas sempre foram sistemas de troca, trabalhos em comum como filmes, livros e programas de TV. Nunca dei aquela aula ostentação, aquela aula masculina, que é o grande modelo acadêmico. Então, eu nunca fui professora. Nunca dei grandes palestras, nunca fiz coisas com muita bibliografia…
[Teresa] Você é uma revolucionária na academia?
Eu não sei se eu sou uma revolucionária, eu sou uma pessoa que ficou desconfortável na academia o tempo todo, e minha produção é nesse sentido. E eu tentei criar um espaço dentro da universidade, que era um espaço diferenciado.
[Renato] Quando eu fui assistir a uma aula sua, quando eu pensei em fazer mestrado, ficou isso muito claro para mim: você colocava em questão a autoridade acadêmica e a instrumentação acadêmica. Você dizia: “Será que nós temos os instrumentos corretos para pensar os tempos de hoje?” O que era raríssimo, e continua sendo muito raro em qualquer aula que eu tenha assistido.
É porque eu não tenho essa fascinação do sucesso acadêmico. O que me fascina é o espaço acadêmico com alunos, especialistas incríveis ao alcance de sua mão, debates que podem ser travados, sonhos que podem ser sonhados.
[Teresa] E o feminismo, que foi de onde saimos…
Então, eu era uma ativista de direitos humanos e meu foco específico era a questão das mulheres. Inclusive porque eu me sentia confortável como mulher, como professional mulher. Em 1980, eu fui fazer um pós-doutorado na Columbia University, com a Jean Franco, que era uma feminista brilhante. E naquele momento específico estava começando a Terceira Onda do feminismo, ou seja a entrada do feminismo no espaço institucional dos saberes constituidos. Começou a aparecer por todo lado uma produção teórica feminista interessantissima. Era um momento de grande sofisticação teórica. Eu comecei a estudar as teorias feministas e comecei a ficar fascinada.
[Renato] Ou seja, você só se interessou pelo feminismo quando você arejou e isso deixou de ser uma coisa ortodoxa.
Não, eu acho que foi quando eu encontrei um lugar de pensamento que questionava a autoridade espistêmica masculina. E foi um momento muito lindo, porque todos os países, todos se aplicavam em estratégias de interpelação teórica do discurso. Eu fiquei muito ligada nisso tudo e comecei a perceber meu ambiente familiar e professional, onde eu me acahava confortavelmente situada, um espaço de alta voltagem sexista. Comecei a perceber, lá de longe, que ser mulher era muito difícil… Eu nunca tinha sido respeitada, e comecei a perceber isso lá. Me tornei feminista e durante uns 10 anos eu me dediquei a estudar e promover ações políticas sobre a mulher na universidade. Tem um fato engraçado. Eu quiz organizar um núcleo de estudos de gênero na Escola de Comunicação da UFRJ e a congregação rejeitou dizendo: “Mas mulher não tem nada a ver com comunicação! Que história é essa?”. Aí eu falei: “Tudo bem”, e fiz o núcleo sem dizer que era de relações de gênero. Do jeito que a burocracia da universidade está, ou você mente ou você não faz nada. Fiz projetos alternativos na universidade o tempo todo. Por exemplo: eu queria muito criar um ambiente – de novo, um espaço – de interlocução entre a extensão, quer dizer, a sociedade civil, a graduação e a pós-graduação. Eu não via sentido num trabalho setorizado. Então criei um curso de extensão, um de graduação e um de pós graduação com códigos diferentes mas que aconteciam no mesmo lugar e no mesmo horário. Esse curso deu origem à Universidade das Quebradas.
[Renato] Como foi sua trajetória na UFRJ?
Comecei na Letras em 1964. Em 1968, Letras se desdobrou Letras e Comunicação porque antes jornalismo fazia parte do curso de Letras. Por um tempo fiquei nas duas, depois optei por Comunicação que era mais nova, estava para ser inventada, era um campo sensacional para a imaginação institucional. Era tudo o que eu queria, era uma “obra” mesmo, nada estava construído. O nome disciplina que eu dava era Comunicação Fabular e Icônica. Não era nada! Fiquei na ECO de 1968 a 1980, viajei para um pós doutorado na Columbia, Nova York, e dois anos depois, na volta, CIEC (Centro de Estudos Culturais) dedicado à nova area que estava surgindo, os Estudos Culturais, com atenção voltada para minorias étnicas e de gênero, estudos das cidades, políticas públicas. No primeiro ano ganhamos uma dotação Rockfeller, que estava apoiando instituições inovadoras na América Latina. Aí então o CIEC se desenvolveu com muita potência, porque ele tinha independência financeira. Fizemos também um enorme projeto em 1988, sobre os cem anos da Abolição no Brasil, com apoio da Fundação Ford. O CIEC começou a ganhar muita visibilidade e obviamente começou a ser odiado.
[Renato] A escola odiava?
Odiava, porque de repente, naquele lugarzinho, que eram duas salas, tudo era possível, entendeu? E era orientado para Estudos Culturais, era orientado para Raça e Gênero, coisas também não muito palatáveis naquele momento.
[Renato] Mas isso antes que o termo Estudos Culturais surgisse com força, né?
Sim. Acho que o CIEC foi pioneiro. Tinhamos um programa muito forte, com convidados internacionais importantes, muitos projetos, seminários, residencias. E aí logo depois teve um concurso de titular que foi feito para mim, porque eu já estava na hora de ter essa progressão. Na última hora, apareceram dois candidatos apoiados pelo Muniz Sodré e pelo Francisco Dória, que eram o Chaim Katz, e o Escobar. E foi barra pesada. Eles não contestaram a banca mas usaram a estratégia de dizer que era banca comprada e veio uma torrente de ofensas sexistas, violentas caindo todas na minha cabeça. Campanha de imprensa que eu era desonesta, e por aí foram. Era uma coisa que hoje eu contestaria com facilidade porque eram todos argumentos de assédio e machismo. Mas na época, fiquei calada e ganhei o concurso.
[Renato] Não tinha ideia que você tenha passado por isso.
Foi uma coisa bárbara esse concurso. Violência mesmo! Ataques pessoais, indiretos e na media. Aí o Zuenir Ventura, que é muito meu amigo, disse: “Helô, não responde, não se defenda, porque eu sou jornalista e eu sei que você se defender isso entra em pauta, e você não vai ter mais sossego neste concurso”. Isso é uma coisa que eu jamais saberia se o Zuenir não tivesse me aconselhado. É uma expertise jornalística, porque eu me defenderia, imediatamente. Na véspera do concurso fui ameaçada de ter a banca impedida pela polícia. Liguei para o Reitor que era o Nelson Maculan e ele veio pessoalmente instalar a banca trazendo junto o advogado da UFRJ. Tudo muito pesado. O escândalo foi tal que a TV Globo filmou a prova final do concurso. Foi matéria de TV Globo. Um absurdo.
[Teresa] Isso foi quando?
Foi em 1993. Mas teve um lado lindo. Na prova de palestra, a comunidade acadêmica foi em peso para me apoiar. Era uma coisa intensa porque gerou indignação, não era só por minha causa, não. Então terminou que teve um lado muito lindo esse concurso. E eu ganhei o título de Mulher do Ano por causa disso. Eu dei milhões de entrevistas depois, de televisão, jornal, acabou numa vitória retumbante. Porque não foi a vitória de um concurso: foi a vitória de uma pessoa que estaca sofrendo violência de pares.
[Renato] E você coloca isso numa questão de feminismo, inclusive?
Naquela época não percebi isso dessa perspectiva. Eu sentia que era violência contra uma mulher, mas não tinha instrumentos de reação nesse sentido. Não acionei nenhum recurso jurídico, que era o que eu deveria ter feito. Depois da vitória criei o PACC, um desdobramento do CIEC, no Centro de Filosofia e Ciencias Humanas e fiquei muito tempo sem ir à ECO.
[Renato] Mas o PACC era vinculado à ECO?
Não. Eu queria exatamente sair da ECO. Então aí começou um outro período, que foi o PACC, minha experiência no Fórum de Ciência e Cultura, na Editora UFRJ. Foi muito bom. O PACC trouxe novas pautas como globalização, tecnologia, desigualdades sociais. Eu tive que me desorganizar para me reorganizar em outro modelo e veículos institucionais. Então foi isso, quer dizer, é uma criação eterna de novos desenhos, novos espaços. Sabe quem é o Preciado?
[Teresa] Paul Preciado, antes Beatriz.
Então. E ele fez a teoria contrasexual, dele, como um trabalho de arquitetura. Quando eu soube disso, me identifiquei imediatamente… Eu pensei: “Eu faço arquitetura, também”. Ele fez o projeto de zonas corporais se rearticulando em novos campos erógenos. Arquitetura!
[Renato] Quer dizer, um novo conceito para arquitetura, arquitetura como um manejo de espaços abstratos…
É, gerência de espaços acadêmicos abstratos de conhecimento. Exatamente. Isso é o que eu sinto, que sempre me deu prazer.
[Renato] É uma disposição de espaços… Mas isso é incrível, porque você saiu por aqui e de repente você apareceu por lá, você une a cozinha com a sala na academia, também.
É isso, era isso o que eu queria te dizer. Agora é que eu consigo entender o que é que eu fiz. Paul Preciado que me ensinou.
[Renato] Não, mas você já estava fazendo antes.
Eu estava fazendo, mas eu não sabia que era arquitetura real.
[Renato] É muito bacana pensar arquitetura como algo expandido para além da matéria.
Para além do chão, além do cimento. É isso o que eu faço.
[Teresa] Você traz, você faz esses corredores, abre paredes… E muda completamente.
É engraçado… O PACC foi assim: eu vi aquele prédio que estava interditado porque ele estava condenado, ele era para ser uma biblioteca e não passou no teste de carga. Aí eu falei: bom, eu não sou tão pesada quanto livro. Aí eu fui lá no Maculan e falei: “Eu posso ocupar o espaço ali? Porque a gente é leve, não vai cair. Não é biblioteca e aquilo está fechado há anos”. Arquitetura, de novo. Aí ele falou: “Pode”. Eu falei: “É para já”. Fui na Finep, consegui uma grana para fazer uma obra e fizemos um espaço de 250 metros, é o triplo disso aqui, todo de vidro, lindíssimo.
[Renato] Eu trabalhei lá, foi lá que a gente se conheceu.
Exatamente, você estava na Biblioteca Virtual. Então, a Biblioteca Virtual é outra experiência de construção da informação desse tipo, no campo da internet. É sempre a mesma coisa…
[Renato] Era lindo aquele espaço.
Era lindo. Então, eu fiz aquele espaço e todo mundo diz: “Nem parece a universidade”. Hoje, na Faculdade de Letras ouço a mesma coisa sobre o espaço do PACC. Todo mundo diz: “Nem parece a Faculdade de Letras”.!
[Renato] Tinha aquelas ilhas com os computadores, tudo aberto. Você fez uma pós lá, né?
Isso aí eu tenho que te contar, também. Mas eu estou ainda na formação do PACC. Então o PACC se abriu muito para novos objetos. Aí a Pensamos o PACC inicialmente como um projeto de doutorado inovador. O Silviano Santiago a Marisa Kassin e eu, pensamos: vamos fazer um novo espaço de doutorado, um doutorado diferente. Debaemos com o CNPq, com a CAPES, fomos de porta em porta, de agência em agência, antes de nos aventurarmos para saber em que terreno estaríamos pisando. A ideia nuclear era: um primeiro ano presencial, a partir do segundo ofereceriamos um doutorado gerencial, que é virtual. Então no primeiro ano a gente acolhia os alunos, tinha aula. Se o aluno tinha muito potencial, ele continuava no doutorado, e o mestrado seria concluido em só um ano, o que para a CAPES e outras agências seria confortabilíssimo. Isso tudo estava sendo formalizado com as agências competentes, não era uma invenção. Então: um mestrado compacto de um ano, mais carregado. Quem sobrevivesse, passaria para o doutorado.
[Renato] Direto.
Esse doutorado não tinha atividades no PACC. Os orientadores dirigiriam os alunos para fazerem os cursos mais adequados à sua pesquisa e que estivessem disponíveis na cidade ou no exterior. A gente desenhava o mapa dos cursos existentes e indicaria os mais adequados para o projeto daquela pessoa. E às vezes, indicariamos uma bolsa sanduíche: “Vai para Portugal, mas é com o Boaventura em Coimbra, não é em Nova York para encontrar o namorado, não. Vai para ali, porque ali é que tem, o Tourraine que vai ajudar muito nesse projeto”. Então era maravilhoso, porque não tinha custo, era zero, não se criava nehuma estrutura burocrática, era só articulação e teria sido em termos de qualidade, como um doutorado otimizado. Você ia ter um curso customizado para cada um, com os melhores professores de todos os lugares. Então isso foi um sucesso na Capes. Aí levamos, felizes da vida, para apresentar no Conselho de Pós Graduação. Chegou lá, eles disseram: “Não, sem professor, não existe doutorado.”
[Renato] Isso dentro do conselho da UFRJ?
É.
[Renato] Quer dizer, a Capes já estava ganha e….
É, mas “Isso não tem professor, isso é um golpe, vocês estão dando um golpe, de repente vão aparecer os professores, vocês querem acabar com a ECO”. Aí deu uma tristeza… Porque seria um doutorado com custo zero para a UFRJ. E para o aluno, um curso com proveito máximo.
[Renato] Pois é, é uma mentalidade tacanha.
Fomos simplesmente dizimados, o projeto não foi aprovado. Aí o Silviano, que não sou eu, não é arquiteto, ficou desgostoso e foi embora. Mas eu, que gosto de fazer obra, quando derrubam uma, eu já começo a fazer a outra. Eu comecei logo a pensar o que é que eu vou fazer. Aí um professor, chamado Paulo Pedrosa, sugeriu: “Faz um pós-doutorado”. Eu falei: Isso. Pós-doutorado não é nada. Não tem regras, não tem lei. E transformamos o fracasso do doutorado num pós-doutorado que não existe no Brasil. Com reuniões mensais, palestras, discussões de pesquisa.
[Renato] Marisa está em Brasília, não?
Sim. Ela era do CNPq. A Yone Chastinet sua amiga, falou: “Vamos inventar uma biblioteca?”. Na época, não havia nenhum instrumento de busca. A Yone estava inventando o Google!
[Renato] Um projeto sensacional!
O Google é de 1997. Aí a gente começou a fazer… Aí ela falou: “Mas quem toparia isso?” Eu falei: “O PACC”. Porque o PACC não é mesmo nada e é por isso que ele existe. É outro raciocínio arquitetônico, que eu criei junto com a Marisa. Não somos um centro, não somos um instituto. A gente não deve formalizar nada. O PACC foi criado estratégicamente como um programa de pesquisa do CNPq, é um projeto meu, pessoa física. Sendo assim, você pode fazer o que você quiser, burocracia zero. Um pesquisador chega e diz: “eu queria tanto fazer esse pós-doc, mas eu não sou doutor”. E eu falo: “Mas faz, faça um pós-doc. Depois você faz um doc. Qual é o problema? Quer dizer, eu criei um espaço mágico, de total liberdade. Isso foi por conta da Marisa, que disse: “Não cria um centro!”, qualquer formalização gera burocracia e é isso que está emperrando o trabalho das universidades. Não sou uma unidade orçamentária então não posso receber dinheiro nenhum da universidade. Mas vivemos de bolsas e apoios à pesquisa. E vivemos bem. Nesses quase 15 anos crescemos muito.
[Renato] Por que é que vocês saíram de lá, da Praia Vermelha?
Porque eu fui expulsa. Eu fui expulsa de todos os lugares onde me sediei até hoje.
[Teresa] Por que você foi expulsa?
Eu fui expulsa porque o reitor, o Aloisio, tinha um inimigo – essa história é absurda – tinha um inimigo na Educação, que era um cara muito poderoso. E ele pediu o espaço para botar um curso da Educação lá. Aí o reitor me tirou: “Olha, Helô, eu preciso desse espaço, é uma questão política”. Eu tinha criado um espaço fisicamente belíssimo, fiquei estatelada. Aí o povo do PACC queria fazer um movimento. Eu falei: “Não faz, não, porque a gente vai fazer outra coisa, e melhor, aposto”.
[Renato] Aí vocês foram lá para o Fundão?
Não, eu fui para o Fórum de Ciência e Cultura. Eu saí do CFCH espontaneamente. O CFCH não defendeu meu espaço. Eu construí tudo aquilo. No Fórum, enquanto ainda estava desenhando o espaço o prédio pegou fogo. Foi aquele incêndio horrível na Praia Vermelha.
[Renato] E aí?
Por conta do incêndio fomos todos lá para o Flamengo, que era a antiga Casa do Estudante. Aí de novo, eu criei um espaço belo e foi nessa época que o projeto Universidade das Quebradas começou a bombar. Então fomos lá para a Praia Vermelha e fomos felizes durante cinco anos. Aí veio o Wainer, que era um novo director, e que me disse: “O PACC não é do Fórum, não tem um vínculo formal, e vocês não têm qualidade acadêmica para ficar aqui”.
[Teresa] Outro preconceito.
Aí eu falei: mas eu tenho 70 artistas de periferia inscritos aqui, eu não tenho outro espaço para 70 pessoas. Aí ele disse: “Você pode ficar mais um mês, porque você tem uso capião. Realmente eu estava há 15 anos no Fórum, então mereci uso capião. Aí eu falei: “E as Quebradas?” Ele falou: “Eu acho que a Universidade deve ir às favelas”. Eu falei: “Esse projeto é para o contrário: hackear a universidade”. O conceito desse projeto é que ela entre aqui e interpele, quebre saberes. Aí eu saí no dia seguinte. Porque lá mesmo, dei um telefonema para o Museu de Arte do Rio que naquele periodo estava lançando a Escola do Olhar, um projeto de inovação radical de educação. O director era Paulo Herkenhoff. Liguei para ele e ele disse: “Vem para cá amanhã”.
[Renato] Tudo a ver.
Eu fiquei um ano no MAR, na Escola do Olhar. Aí a Faculdade Letras me convidou para ir com meus projetos para lá, e eu fui. Mas não sai do MAR, porque o trabalho no MAR foi uma experiência importantíssima, de discussão com curadores, de imersão nas artes visuais. Ficamos então 6 meses no MAR, 6 meses na Letras. Estou construindo espaços nomades. O poeta Cacaso fez um poema pra mim chamado Relogio Quebrado. Era assim: “Não sei/parar /na hora/certa”. Para mim realmente qualquer derrota vira estímulo. Dizem que isso é o que se chama histeria…. A outra coisa que Cacaso dizia para mim é que eu “tomava cimento na veia”. É verdade. A única coisa que me dá barato é cimento. É uma coisa impressionante, porque realmente eu vivo de cimento, virtual ou concreto.
[Teresa] Você se muda com uma rapidez incrível. E uma obra atrás da outra. Ver suas casas é ver você…
Eu adoro. Você já conhece três, não é?
[Teresa] Sim.
Foram umas dez. Eu corri a cidade: Copacabana, Jardim Botânico, Gávea, Cosme Velho, Leblon, Ipanema…
[Renato] Tinha uma famosa casa da Heloisa, das festas…
A da rua Faro. Era o ponto de encontro dos poetas marginais.
[Teresa] Aquela que tinha uma árvore dentro…
Essa é a do Reveillon, na Rua Carlos Luz, Jardim Botânico também. Tinha uma jaqueira dentro, no meio da sala. Essa era só um chapéu (um telhado desabado) com uma árvore no meio, telha vã, uma cozinha dentro da sala, tudo junto, e dois quartos, um das crianças e um meu.
[Teresa] E agora a arquitetura, as mulheres…?
Agora eu fiz uma obra na Letras, está lindo. Aquele espaço era um lixão. Ali se guardavam móveis quebrados. É um espaço enorme, todo transparente com mesas gigantescas. Foi um co-working avant la lètre. Temos agora o pós-doutorado e vários laboratórios. O mais novo é o Laboratorio da Palavra, que agora está sob a direção de Eduardo Coelho e superlotado. Eduardo é um parceiro genial.
[Teresa] Você é uma força da natureza.
Não, eu sou uma arquiteta. Sou apaixonada por poesia, por palavra, por letras. Mas quando se entra em uma faculdade de Letras, não tem letra. Só materias teóricas. A universidade é fantástica porque pode ser como uma massinha que você pode modelar, porque se você for fazer o que ela quer e oferece vai dar em nada. Tudo vai contra: o jeito, o encaminhamento, a burocracia, os valores.
[Renato] A própria arquitetura…
Não, a arquitetura é linda, é que ela é estragada. Aquele prédio da Letras é premiado. Eu tinha vontade de pintar. Você sabe que eu pedi para dois reitores diferentes, Paulo Gomes e para o Vilhena, para ser prefeita do campus. Eles achavam que era piada. E não era! E insistiam em me dar a direção de outras coisas. Eu nunca quiz. Queria ser prefeita. Nunca ninguém me deu esse cargo, nunca ninguém acreditou. E garanto que eu ia fazer um campus de fazer inveja à Dinamarca. Agora eu tenho um projeto para Letras lindo, que eu não consegui porque a diretora não está interessada, que é o seguinte: fazer aquela biblioteca como a Biblioteca Parque, toda aberta, para fora, servindo ao campus todo, com sala de oficina, com videoteca… Porque a de Letras, é a maior biblioteca da América Latina de literatura. Que você não consegue entrar porque não tem ar condicionado. Eu falei: vamos fazer isso. Chamei a Bel Lobo, chamei a Vera Saboya, responsáveis pelo projeto das Biblioecas Parque do Estado, fizemos um projeto deslumbrante mas ninguem se interessou. Assim, nem entrou na pauta de discussoes da Faculdade.
[Renato] Mas tem dinheiro para fazer?
Mas isso é o de menos, você arranja, qualquer um com um projeto bom, arranja apoio. Se você inventa um projeto inovador, importante, é óbvio que dinheiro aparece. Mas acho que a Universidade tem problemas com a beleza. Considera politicamente incorreto. Já eu acho que as escolas deviam ser os prédios mais lindos da cidade. Tinhamos que investir, as escolas tinham que ser belas, lindas, com grandes arquitetos, aí estava feito. Porque o ambiente fala.
[Renato] Fala muito! Arejado, né?
Fala, você não precisa inventar muito. Primeiro eu faço espaço, depois vem o projeto, e acontece. O espaço fala! O jeito como ele está organizado. Essa biblioteca da Letras é um espaço ocioso enorme. Tem vários acervos, do Afrânio Coutinho, do Celso Cunha, muitos acervos. Cada um tem uma casinha fechada a chave. Você tem que marcar hora para entrar. Gostou?
[Teresa] Tomara aconteça.
Acho difícil, porque estou com 79 anos, leva uns 10 para convencer as pessoas.
[Renato] Fazer é fácil, né?
Fazer é fácil, o diabo é convencer! Que nem o outro projeto do doutorado, que era lindo, aquele nunca aconteceu. Esse da biblioteca também não vai acontecer. Eu tenho certeza que Letras mudava inteira. Os cursos, os professores iam mudar, iam mudar tudo, iam mudar o currículo, ia mudar tudo. É só você fazer um espaço que chama, que muda o resto.
[Renato] Ia deslocar o centro de locomoção, e tudo.
Isso é que eu estou te dizendo que é a arquitetura, é uma questão do espaço que determina uma coisa. O Foucault já não estudou tanto isso, o espaço disciplinar? Prisão, escola… Tudo está previsto. É só você arrebentar isso. Arrebenta isso que acontece outra coisa. Muda o comportamento geral. Eu acho.
[Renato] Com certeza, Heloisa.
Eu acho que a minha vida inteira foi fazer isso, mudar comportamentos criando espaços.
[Teresa] Então você é uma revolucionária.
Não, sou uma arquiteta. Agora, por exemplo, o negócio das antologias de poetas marginais, fora do centro da produção: eu sempre trabalhei o que estava fora, porque eu trabalho a parede. Você tem que tirar essa parede. Aí nessa pilha vai uma porção de coisas, vai o pós-doc, que é o lugar de troca aberto, livre, que tem de tudo e quem quiser. Tem a Universidade das Quebradas, que eu acho que é a coisa mais importante que eu já fiz.
[Renato] Explica como é o programa.
O projeto das Quebradas é criar um terceiro nível de conhecimento, juntando academia com cidade. Então, o que é que acontece? A gente tem um edital pesado, porque para trocar você tem que ter uma linguagem comum, senão você não troca. Se eu botar um bando de moleques lá, não vai dar certo, não vai acontecer nada. Eu vou tirar eles do tráfico: mas não é isso que eu quero. Eu quero a universidade transformada, eu quero um espaço novo. Então a gente faz um edital e a pessoa tem que estar em meio de carreira, tem que ter tido obra, se é rapper tem que ter CD… Então tem que ter um protocolo aí de escolher os interlocutores corretos. Depois tem uma entrevista, que elimina, mas a demanda é altíssima. Esse ano a gente está com 70, mas tinha 400.
[Renato] Tem um programa que eles seguem?
Tem. A gente dá a aula, dá uma aula, e eles dão a segunda para a gente. E a gente se encontra na terceira. É muito legal, todos nós aprendemos muito. Hoje temos muita gente boa somando, tem o MAR, tem a agência de inovação, que é sensacional, lá da UFRJ, que está cuidando de cada projeto deles como um projeto de vida, como é que viabiliza. Temos também uma preocupação de fazer contatos pra eles, fazer uma rede…
[Teresa] É uma incubadora, em certo sentido.
É uma incubadorona, mas não é uma incubadora para criar coisa para eles, não é para eles: é para a universidade. O meu interesse é esse, é que a universidade comece a ouvir, é uma escuta. Por exemplo, tinhamos uma tranceira entre as participantes que fazia experiências químicas com um xampu, que falava das conexões que o fazer tranças traçava em suas origens. Mandaram ela dar aula na química. Foi um sucesso. As teses sobre periferia que os doutorandos desenvolvem passam por uma “Banca” na Universidade das Quebradas. A resposta é incrível, o doutorando percebe olhares novos, os quebradeiros teorias novas.
[Renato] Desconcerta, quebra mesmo.
Quebra! A gente vê um participante que atua na área de teatro, mandamos para a escola de teatro fazendo uma palestra, duas, aí começa a minar, a hackear. A ideia é hackear a universidade.
[Renato] É você, o Gringo…
Não, eu e a Numa Ciro.
[Renato] Vocês duas?
Nós duas. E a Ilana Strozenberg, que ajuda à beça. A Ilana é Deus na minha vida.
[Renato] A Ilana faz mil coisas, né?
A Ilana é a sensatez, é a inteligência. Ela é inteligentérrima, ela é um monstro, ela pensa, é uma pessoa que pensa.
[Renato] Ela está vendo tudo ao mesmo tempo.
Eu tenho a escuta flutuante, ela tem a escuta real, lógica. A minha é flutuante, eu pego um sinal e vou atrás. É diferente, eu não estou nem aí para juntar as coisas…
[Renato] Sim, é uma espécie de vírus que você coloca lá e o negócio vai…
Exatamente, vai liberando. O caso da defesa que fiz da cultura marginal foi incrível, porque o que eu levei de porrada, o que eu fui destituída por causa disso. Eu não sei se é porque eu sou mulher, também, porque agora eu estou ouvindo o que eu não ouvi na época. Tinha sempre uma coisa de mulher, pejorativa. Eu trabalhava muito com o Darcy Ribeiro, então tudo o que eu publicava ou inventava eles diziam: “Ela dá para o Darcy”. Então foi sempre isso: o que eu faço é porque eu dou. Ou então ociosa, também tinha isso, muito. “Ah, não tem nada o que fazer então inventou poesia marginal”, isso aí tem na crítica o tempo todo. “Ela não faz nada, não tinha nada que fazer, inventou essa coisa no Rio”. Teve um crítico que falou que só tinha porcaria na antologia 26 poetas hoje. Palavrão, sujeira, que aquilo não era poesia. Aí eu e um dos poetas marginais, o Charles, respondemos assim: “A gente não vai falar, a gente vai fazer, tira a foto”. Era para Fatos e Fotos. Nas fotos eu lavava os livrinhos e passava com ferro elétrico e o Charles botava em uma corda para secar. Essa foi nossa resposta. “Agora limpamos tudo, está bom Professor?” E me criticavam porque aquilo não era literatura. Hoje, além dessa poesia ter virado cânone, temos três desses poetas na Academia Brasileira de Letras: Secchin, Geraldinho, Cícero também é meu antologizado, mas não dos marginais, mas também antologizado. Tinha esse lado de ser realmente uma coisa nova, uma coisa outra, mas tinha o lado de ser eu, uma mulher. Não sei se fosse o Cacaso seria essa a recepção.
[Teresa] Eu penso que teria havido uma discussão mais intelectual.
E não houve. Houve uma desqualificação. Como em tudo o que eu faço, é interessante isso. No meu concurso eu me lembro que na banca diziam assim: “Você é muito empírica”. Como assim? Sabe, empírica é trabalhar, é mulher! Mulher é empírico.
[Renato] Sim, mas a ciência não tem que ser empírica?
–Mas empírica, ali, era xingamento. Os meus objetos são muito empíricos.
[Renato] Sim, são muito sujos de vida.
É isso, é isso. É mulher! Se fosse homem não ia dizer isso. É interessante isso.
[Renato] Eu ia te perguntar, como você está lidando com essa questão? Porque o feminismo foi colocado muito em questão também com a questão do transgênero.
É o feminismo da diferença, é o que eu estou fazendo. Feminismos da diferença. Eu estou fazendo um livro que vai ter um formato também inovador. De novo, arquitetura. Então o livro vai ter muita gente falando. Eu ouço as poetas e coloco, eu ouço as ativistas, eu ouço as cineastas… Eu estou ouvindo, fazendo entrevista e transcrevendo as entrevistas e tentando botar o máximo de vozes possíveis. Eu vou amarrando. O grifo é meu, é o nome do prefácio. Eu vou amarrando essas vozes e botando um pouquinho de uma visão teórica aqui, outra ali. Mas, em princípio, é um livro autoproduzido. Eu queria, e eu vou chamar de livro-ocupação. O título sera Explosão Feminista.
[Teresa] Ocupando o espaço de um livro.
Ocupando o espaço de novo, o livro virou um espaço. Deixou de ser um livro.
[Renato] E o livro é um espaço arquitetônico desde o neoconcretismo.
Sim, mas eu digo que ele deixou de ser um espaço autoral e virou um espaço coletivo.
[Teresa] É sobre a quarta onda feminista?
Sim, sobre as novas formas de ativismo, de arte, de poesia, de sexualidades. É complicado, porque é muito novo tudo isso. As questões trans, carro chefe das novas teorias queer, são as mais visíveis e polêmicas. Então não está regulamentado do ponto de vista legal, do ponto de vista ético, do ponto de vista estético… Ainda não temos o instrumento para aceitar as novas complexidades da sexualidade com facilidade. Por exemplo: a Indianara, líder trans, tem uma performance, que toda hora ela faz. Vai para a rua e tira a camisa. Fica de peito de fora. Aí ela é presa. Aí ela mostra que ela é homem. Aí o delegado solta porque homem pode andar sem camisa. Ela cria esse caso e filma. Isso prova que você não tem nenhum aparato para lidar com essas novidades. O delegado fica estonteado. E mesmo nós, não estamos instrumentalizados para isso. É muito novo.
[Renato] Na poesia tem muita gente boa.
Tem a minha paixão, que é a Adelaide. Tem as lésbicas, que aparecem pela primeira vez, assumidamente lésbicas.
[Renato] É outra coisa, não é falocêntrica. É essa terceira via.
É a terceira via. Elas dizem “paucêntrica”. Elas não são “paucêntricas”. Essa discussão da centralidade do falo é muito bem trabalhada pelo Preciado. Ele vai e diz, é uma coisa genial: “Da minha perspectiva, o pênis é nada mais do que um dildo de carne”.
[Teresa] Para homens e mulheres, para todo mundo.
Exatamente. É um dildo de carne, não é nada além disso. Isso simplesmente tira a centralidade do pênis enquanto falo, significando poder, lei. A partir daí esse deslocamento abre um mundo totalmente novo. É difícil para mim, com essa idade, entender bem isso. Eu acho que eu estou entendendo bem, mas eu não saberia praticar. Porque o meu corpo não está disponível.
[Renato] Nem o meu.
Mas o meu não está mesmo, porque eu tentaria, hoje, para ver o que é. Eu gostaria de entender isso.
[Renato] Esse desmembramento.
Mas eu não tenho mais essa competência.
[Teresa] Você gostaria de transicionar, mesmo?
Eu gostaria de pelo menos estar livre para isso, eu não estou mais, eu estou velha, já era. Eu perdi a hora. É o que eu digo a eles: eu sou uma cis velhinha. Então é o seguinte: eu passei uma vida inteira lidando com minha sexualidade confinada num espaço exíguo do meu corpo, da minha pessoa, trancafiada, sem respirar, só num lugarzinho. A única coisa que eu posso dizer agora é: perdi. Fazer o quê? Eu não posso mais inventar essa.
[Renato] Parece que hoje o mundo é muito maior.
Não, o corpo é muito maior.
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