Pular para o conteúdo

Entrevista: Milton Santos por Gilberto Gil

A conversa a seguir, entre os baianos Gilberto Gil e Milton Santos, foi realizada em 1996 e publicada no livro Milton Santos – Encontros, em 2007.

Professor Milton, eu não preparei nenhum roteiro especial, até porque não me sinto capaz de especular sobre a sua área de conhecimento e trabalho, mas como tenho interesse em que seu pensamento, suas ideias estejam divulgadas no nosso site, eu ainda assim quis conversar consigo e saber algumas coisas. Gostaria primeiro que o senhor nos desse uma ideia da sua formação, o início, os primeiros tempos na Bahia, como intelectual e em sua disciplina universitária.


Eu estudei direito e já estudante de direito ensinava geografia, que descobri ser realmente o meu grande interesse. Foi isso que me levou a fazer um doutorado em geografia na Universidade de Estrasburgo, na França, e daí por diante comecei uma carreira de pesquisa na Bahia mas também em outros países, que me conduziu a diversas aventuras intelectuais que se ampliaram a partir de 1964, por razões conhecidas, quando eu tive que deixar o Brasil. Creio que minha carreira começa com estudos empíricos, isto é, tentar descrever simplesmente o que era a realidade territoral e social aqui e ali, na Bahia sobretudo, mas também no Brasil e fora do Brasil. Depois, passei a ter um interesse mais teórico, mais epistemológico. Isso coincide com a minha distância do Brasil, quando o objeto concreto de trabalho não estava presente, a possibilidade de informação reduzida. Há dois abrigos para os homens, um é a terra e o outro o infinito. Então eu me abriguei nessa área mais de pensar o mundo, de pensar os lugares, e tentar uma geografia mais abrangente, mais uma metageografia do que mesmo geografia.

Essa contextualização nova do interesse geográfico lhe ocorreu a partir de Estrasburgo, ou já da Bahia, ou possivelmente no professorado aqui no Brasil?


A Bahia é sempre o centro, mas eu creio que essa ruptura ocorre a partir do fim dos anos 1970. Até os anos 1970 eu estava na França. Não era minha terra, mas era um pouco minha terra. Depois eu tive que trabalhar nos Estados Unidos, no Canadá, na Tanzânia, na América Latina. É uma forma de desagregação e a vontade de evitar a desagregação, essa retomada da unidade do homem, é que me jogou no caminho da filosofia, junto à minha ignorância crescente do Brasil. Acho que foi sobretudo isso.

Nesse percurso, nesses lugares que o senhor mencionou, França, Estados Unidos, Tanzânia, Brasil, incluindo Bahia e São Paulo, o senhor esteve nesses lugares sempre na situação de aprendiz e mestre, professor e estudioso? Aonde o senhor esteve como professor, aonde o senhor esteve estudando?


Eu estive como estudante somente em Estrasburgo, nos anos 1950. A partir de 1964, na França, sempre como professor, que passou a ser a minha atividade central, praticamente única.


Nesse conjunto pensando sempre e escrevendo, e também professor?


Ah sim, o tempo todo.

Quantos livros?


Creio que são uns 40. E uns 300 artigos científicos.

Eu gostaria que o senhor me falasse um pouco de um conceito, que eu sei que está nos seus livros, eu não o li, mas o senhor mencionou numa palestra que fez na Câmara de Vereadores de Salvador, onde eu era vereador alguns anos atrás, que é o conceito de fase popular da história. De onde o senhor tirou isso? Por que estaríamos, segundo o seu sentimento, seu conhecimento, numa fase popular da história, o que quer dizer isso com relação a outras fases que a história humana tenha vivido?


Eu creio que o homem ocidental se acostumou a pensar a história a partir de um processo, que é dito às vezes revolucionário, mas que é linear, porque o homem ocidental pensa a história a partir da técnica, cujas grandes mudanças praticadas são sobretudo quantitativas, e só aparentemente qualitativas. É a quantidade de razão incluída nos objetos que permite ao homem o chamado progresso, uma outra visão do mundo, uma outra possibilidade de atacar a natureza e de, assim, produzir relações etc. Eu creio que nós estamos entrando em uma fase diferente, porque vai haver uma mudança qualitativa extremamente forte, onde tudo vai se submeter ao homem e não à técnica, ela própria comandada pela produção, como tem sido até hoje. Bom, essa tese nova é de difícil aceitação, porque de um lado ela parece se chocar com a maneira de pensar que nos foi ensinada pelos europeus, diante dos quais nós temos tendência a ser muito reverentes, mas por outro lado essa nova tese resulta não apenas de uma vontade de esperança e de uma crença no futuro, mas de uma leitura diferente do fenômeno técnico, uma leitura mais filosófica do que pragmática. O fenômeno técnico é por definição também uma forma de produção da inteligência do homem…

É como uma extensão da mente.


Exato.

Dos corpos e das mentes. Mecanismos e pensamentos…


…ligados à forma de viver que vai se modificando a partir das formas do fazer. Nesse sentido, creio que a urbanização e a urbanização acelerada, urbanização devastadora e, sobretudo no nosso país, a forma como as nossas cidades cresceram, assim como as africanas e também as asiáticas, são um estouro, criado a partir das novas tecnologias e cheio de consequências inesperadas. As novas tecnologias empurram o homem para as grandes cidades, porque o campo se moderniza …

Ele próprio se torna praticamente uma extensão da cidade.


O campo se esvazia, e é a cidade que tem muitos e diversos empregos e o campo gravita em torno de uma ou algumas atividades, então ele expulsa as pessoas, que vêm então para a cidade. Vêm para a cidade para serem pobres. Alguns melhoram de vida, mas a grande massa permanece pobre, e este fenômeno de pobreza na cidade hoje está também presente no hemisfério norte. Cada dia eu me convenço mais que os pobres são mais fortes do que nós da classe média e do que os ricos, porque os pobres é que tem a possibilidade de sentir e pensar. O nosso pensamento é enquadrado, primeiro pelo nosso interesse, mas também pela forma como nós instrumentalizamos tudo, até mesmo os nossos bairros, as nossas casas. Tudo isso é uma prisão para o pensamento. Ora e aí entra uma outra discussão filosófica, epistemológica: a necessidade que eu estou sentindo agora de recusar a epistemologia do iluminismo que nos ensinou a fraqueza dos pobres.


O chamado conforto burguês.


O grande conforto burguês traz uma preguiça intelectual.

É a renúncia a isso, renúncia à atividade pulsante da mente e do corpo no sentido mais rigoroso.


Exato. E o conforto supõe pragmatismo, supõe um investimento cada vez maior em pragmatismo. Quem pensa o novo são os homens do povo e seus filósofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes artistas e alguns intelectuais.

O bardo.


O bardo e alguns intelectuais, num mundo que está assassinando os intelectuais. É muito difícil ser intelectual hoje porque os intelectuais querem ser establishment. Então eles perdem a possibilidade de interpretação do movimento, perdem a possibilidade de se casarem com o povo, e de se casarem com o futuro. Creio, porém, que apesar disso, apesar do peso da ciência, nós estamos nos encaminhando para uma outra era no mundo inteiro, em grande parte por causa das novas tecnologias. Um pequeno exemplo: não há nenhum milagre maior do que a forma como a cultura popular está tomando revanche sobre a cultura de massa. Há 20, 30 anos atrás, a gente se preocupava com a ideia de que a cultura de massa iria esmagar a cultura popular. Nada disso, estamos vendo…

A cultura popular se apropriando das ferramentas possíveis…


…isso é objeto de uma entrevista sua que eu li recentemente.

Sim, de vez em quando eu toco nesse assunto, porque é um tipo de pensamento, tipo de reflexão que me ocorre, não com o rigor que o senhor tem e com a persistência, a perseverança.


Eu sou pago para fazer isso. (risos)


Também me interessa, e sem dúvida aqui e ali eu menciono esses arroubos de sentimentos. E quais seriam as consequências básicas que o senhor antevê, para essa fase, essa apropriação?


Acho que vai haver uma grande mudança política, mas nós não temos noção dessa possibilidade, dessa enorme mudança, por causa da violência da informação que é um traço característico do nosso tempo. A brutalidade com que a informação inventa mitos, impõe mitos e suprime o que a gente chamava antigamente de verdade, essa violência da informação e das finanças, criou uma certa ideia tão forte do mundo atual que a gente fica desanimado diante da possibilidade de um outro futuro. Mas se a gente se detêm a pensar na maneira como o mundo está funcionando, na maneira como os pobres se apropriam da tecnologia… Os pobres e oprimidos estão fazendo, de uma maneira extraordinária, o uso das novas tecnologias, no seu trabalho e em seus assaltos, por exemplo, e estão encontrando e defendendo ideias aí pelo mundo afora e de que a gente fala pouco…

As várias formas de pirataria. (risos)


A cidade é o lugar ideal, porque é o lugar onde todo mundo se comunica. Em todo caso se comunica mais do que em outra parte. Esta presença dessas massas que se levantaram com uma força não conhecida em nenhuma outra fase da história, essa mobilidade, esse roçar cotidiano que constitui um debate diário dissimulado ou ostensivo…

Uma caixa de fósforos ali onde se risca — faíscas a qualquer momento! (risos)


E como manifestação que a gente não está ainda consciente… Mas eu creio que isso tudo vai ser canalizado, porque o horror não pode ser permanente, a barbárie que nós vivemos, o horror que nós vivemos não pode durar indefinidamente.

O senhor sente indícios desses encaminhamentos? A perspectiva futura está colocada claramente como o senhor diz, e os indícios? O senhor diz: a informação ainda encobre tudo, ainda afasta a visão mais clara desse brotar, dê exemplos, dois ou três indícios.


Eu creio que um deles é a forma de solidariedade, muito numerosa entre os pobres, que nós não vemos porque a universidade se interessa pelo escândalo, mais do que pelo fato. A universidade se tornou, também ela, subordinada à mídia e à moda, porque a carreira em grande parte é subalterna à moda. Como a universidade estimula o carreirismo, em vez de estimular a profundidade, a maior parte das pesquisas não é para as coisas desse gênero.

O que está vindo. Para tentar manter o que já está.


Ou diabolizar certas manifestações.

No sentindo de neutralizá-las, como emergência.


Eu creio também que há novas formas de produção econômica na cidade. Que 16 milhões de pessoas, em São Paulo, subsistem. Mas apenas se fala em estupros, assaltos. Quero dizer que há uma produção econômica a partir da copresença e da solidariedade entre os homens e há por outro lado formas de produção autônoma, como creio que seja seu trabalho, como creio que sejam, em grande, esses 500 mil — há 500 mil sujeitos que saem todo fim de semana de São Paulo! — meio milhão de pessoas e que vão para bares e festinhas. Tudo isso são formas de organização econômica, produto da adaptação às novas condições. Quero dizer que tudo isso é um subproduto da informação. A informação ela é controlada no topo, mas deixa escorregar outras formas que são aproveitadas pelo que se chama de periférico, mas que, na verdade, é a grande maioria da sociedade. O drama é que tudo isso vem com a morte da política, pois os partidos se recusam a ser políticos, e querem ser apenas eleitorais, mesmo os partidos de esquerda se recusam a discutir a sociedade a partir do que ela é.

E quando o senhor diz a morte da política, por consequência a morte do Estado, que está submetido ao jogo político. O Estado é administrado, nutrido, gerido, é processado pela política. São os políticos que se elegem aos cargos de governo, são os presidentes eleitos que nomeiam os ministros, os deputados que legislam em função do que é proposto pelo executivo etc. Esse grande organismo chamado Estado, que esteve historicamente incubido de arbitrar e mesmo de administrar muito da vida social, estabelecer os fluxos, abrir os canais, as possibilidades de interação entre os vários conjuntos sociais, produzir a distribuição da riqueza, produzir os elementos que vão dar suporte à produção, ao fazer humano no sentido social moderno. Esse tal Estado evidentemente com a morte da política também…


Se enfraquece.

Se enfraquece, desaparece.


Passa a ser instrumento do mais forte com o neodarwinismo social a que nós estamos assistindo agora. O processo atual de globalização agrava essa problemática. Essa globalização não vai durar. Primeiro, ela não é a única possível. Segundo, não vai durar como está, porque como está é monstruosa, perversa. Não vai durar, porque não tem finalidade. Para que nós estamos globalizando, para aumentar a competividade? Para que serve isso? O mercado global, o que é isso? Quem já viu esse mercado global? É o cachorro correndo atrás do rabo. E há o que quem trabalha com a técnica chama de disfunção da técnica. Todo o processo tecnológico produz suas disfunções e convida a um novo avanço, tanto na tecnologia como na organização. Então, no caso atual, está havendo todos os dias avanços na tecnologia. Na organização o que está havendo é o avanço do comando unificado porque se diminui o número de empresas e se fortalece o papel de organismos centrais, de finanças…

De políticas econômicas, de políticas de produção…


E como essas políticas são cada vez mais globais, por conseguinte cada vez mais verticais.

Portanto não são mais políticas.


Não são mais políticas e elas não estão se preocupando com quem vai ser objeto delas. E daí é uma das razões porque a gente acredita outra vez na coisa do tempo popular.

Eu gostaria que o senhor insistisse aí: por que a palavra popular?


Eu não quis usar democrático porque é uma palavra que… (risos)

Já foi e está apropriada, já foi desapropriada. (risos)


Popular porque cada vez menos as coletividades são chamadas a ter a palavra. Não é possível! Porque a forma como a tecnologia é utilizada por grupos cada vez menos numerosos para buscar unicamente lucro ou mais-valia não tem finalidade. Qual a finalidade de que uma grande empresa bancária quebre a outra? Hoje nós estamos no reino do nonsense total e global. As massas estão de alguma maneira contidas pela informação, elas também estão contidas pela produção abstrata das universidades. Não é que a gente não vá ver o povo, só que o pensamento não parte daí porque a nossa maneira de começar a pensar é inadequada. Acho que tudo depende de como começar a pensar. Mas voltando à questão, o fato é também que as classes médias no mundo inteiro começam a descobrir que não mandam nada. Isso pode ser importante.

Definitivamente proletarizadas nesse sentido político, ainda que não no econômico ( também já começam a estar), mas no político sem dúvida alguma.


Mesmo na Europa as classes médias estão perdendo poder…

Até porque na Europa, eu acho que o que se chama de povo é todo da classe média, basicamente.


Exatamente. Só que agora estão perdendo as vantagens sociais, perdendo o emprego.

Portanto estão se tornando povo no sentido simples.


Eu creio que essa cortina de fumaça extremamente densa que se estabeleceu pelo que estou chamando violência da informação, nesses últimos 30 anos, é que está chegando ao limite. Então há uma busca de outra coisa, uma busca que é confusa por enquanto. Eu acho que o que a gente chama de povo tem uma enorme sensibilidade mas não pode ter o entendimento, porque o mundo é muito complexo.

Professor, uma questão no meio. O senhor não acha que esse processo todo do sistema, enfim, as relações corporação para corporação, a troca dos interesses fechados, a alienação absoluta do que seja o interesse coletivo, a morte da política, a morte do Estado etc., antes do desembocar nesse oceano da novidade popular, da criação, do fôlego, da ânsia, do desejo da sobrevivência popular, através da criação de uma novidade qualquer, de um novo Estado, das novas instituições, o que quer que seja, o senhor não acha que antes disso tudo esse velho sistema, o ancien régime, não vai passar pela fase da hipertrofia final, a fase hipertrofiada do sistema, como uma coisa do tipo “governo mundial”, por exemplo?


Há essa busca, e já está se dando, de alguma maneira, nas finanças.


Nas finanças já existe, sem dúvida alguma. No campo mesmo das organizações, com o crescimento e fortalecimento dessas organizações do tipo onu, até de outras; fundação de congressos internacionais, Parlamento Europeu, primeiro as configurações regionais, planetárias-regionais desse processo, e depois uma configuração final, realmente global através de um governo mundial, com congressos onde corporações nacionais econômicas e políticas tenham representações, nações com senados e câmaras constituídos globalmente, internacionalmente para gerir questões do tipo ecologia, problemas nas reservas ecológicas, que são de interesse internacional, problemas do tipo tráfico de drogas, que são problemas que não podem ser solucionados parcialmente por nenhuma nação e nem mesmo por pequenos conjuntos de Estados. O que o senhor acha disso?


Na realidade, são duas tendências que vão terminar se chocando. De um lado esse governo das coisas que busca verticalizar tudo, como o Banco Internacional de Berna que disciplina o trabalho bancário no mundo inteiro; e, de outro lado, uma certa vontade de moralidade internacional que seria o apanágio do homem outra vez. A dificuldade é que nós ainda estamos confundindo direitos do Homem com direitos humanos. Os direitos humanos estão indo bem, agora quanto aos direitos do Homem ainda estamos muito atrasados.

Faça um pouco a distinção.


Os direitos humanos estão ligados à espetacularização do sofrimento de algumas pessoas, bem colocadas para produzir o espetáculo, e aí há uma mobilização espetacular mas que não resolve o caso de cada indivíduo.

Não chega lá.


Mas uma coisa da nossa área que estive pensando recentemente: o número de estádios de futebol que se criaram no mundo nos últimos anos, isso junta ao número de enormes clubes …

Esses são os indícios nesse sentido contrário, no sentido da rea-ção, como o organismo humano reage.


Nessas casas de diversão paulistas, cariocas etc., onde eu infelizmente não vou mais, há quantas pessoas? São milhares.

Uma nova sinergia, uma massa crítica que está se formando. E nesse sentido, o paradoxo não se instala de novo de uma forma dramática para o sistema? Quanto mais verticalizado se torna o sistema, mais horizontalidade ele promove potencialmente?


A horizontalidade, aí é um outro problema para a epistemo-logia, porque nos ensinaram, e nós continuamos ensinando, que nós pensamos com o cogito – “eu penso, eu existo”. Não é nada disso. A verticalidade exacerba essa ideia do pensamento calculante, racional.

O controle.


E a emoção? E é isso que eu acho que está voltando, o poder da emoção que se dá no horizontal, porque são os homens que se encontram, é o mundo das surpresas, e surpresa é sinônimo de futuro. O problema é que a codificação dessa situação é difícil.

Mas que havendo um vertical, o que seja, o que se manteve, ele vai ter que cair. (risos)


Acho que já começa a cair, mas se restaura…

Se restaura sempre na mesma altura ou ele vai perdendo? É como se essa mundialização gerida a partir desse sentido criptocrático dos pequenos grupos cada vez menores e cada vez mais poderosos, será que também eles não estão vivendo uma ilusão e que de fato o que está acontecendo seja o estender desse lençol horizontalizante da sociedade?
Acho que a questão crucial é o trabalho, porque é pelo trabalho que a gente vai chegar lá. Porque cada um de nós é dois, então nós somos o homem que tem que trabalhar para alimentar a família, pagar o aluguel, educar os meninos etc., e aí a gente se subordina ao comando de quem produz o emprego. Na medida em que o emprego deixa de existir, deixa de ser permanente, deixa de ser suficiente, e na medida em que eu começo a descobrir o mundo e vejo que as coisas se passam mais ou menos igualmente por toda parte…

Cá embaixo.


Eu creio que algo está se gestando com a dificuldade, de um lado, de uma quantificação, de entendimento codificado, porque contraria todas as teorias e práticas vigentes nesses séculos todos, que nós adoramos; e de outro a dificuldade de transcrever isso na política, que deixou de existir.

Como é que o sistema que trabalha para manter esses instrumentos de controle de verticalidade etc, etc. Como é que ele vai sustentar o fato de que é ele próprio que provoca cada vez mais a aglutinação do pensamento oposto? Esse é o paradoxo moderno que me interessa profundamente: o sistema, ele precisa de otimização, ele precisa cada vez mais de mercado, ele precisa cada vez mais de ampliações, ele precisa outorgar à massa, ao povo, a condição: seja da cidadania, seja renda, seja acessos a conhecimentos, tecnologias etc, etc, etc. Como é que ele se sustenta então, se na verdade o que ele faz é alimentar o inimigo?


E há uma outra coisa que eu queria incluir na nossa conversa, é que pela primeira vez na história da modernidade o homem é o senhor da técnica, coisa que ele nunca foi durante o tempo da chamada natureza, que sempre foi hostil ao homem. O homem não mandava em nada pois as suas descobertas eram subordinadas às condições ambientais. Hoje é que o homem começa a ser autônomo.

Criou suas segundas, terceiras, quartas naturezas. Próximas, intocáveis por eles.


Hoje, a “natureza” cada vez mais se retira, este desencantamento do mundo, que a globalização acelerou, criando cada vez mais diversidades baseadas no artifício de que as cidades são exemplo e permitindo uma fluidez fundada em pontos do planeta devidamente equipados e produzindo relações verticais. E só paralelamente haveria de se descobrir como utilizar essa diversidade: os ecologistas falam de biodiversidade, e eu estou chamando a cidade grande de o lugar da sociodiversidade, quero dizer quanto mais sociodiversidade mais riqueza.

Sociodiversidade, vários micro-organismos em interatividades.


Em profissões, em formas de trabalho.

Sociais, operacionais, técnicas, vivenciais etc.


O dia em que descobrirmos a fórmula de potencializar as relações, porque é isso que cria a riqueza. A grande riqueza hoje é gente, é o homem. A partir das novas tecnologias, esse poder do homem aumenta, só que atualmente, se privilegia sempre a tecnologia mais recente, que não é necessária para o bem estar da maior parte da população. Então o acesso fica cada vez mais limitado.

Vou dar um saltozinho, mas está nisso tudo — e a reforma agrária? O senhor falava em algum momento na tendência para a reunião, muito ao contrário do que almeja a reforma, no sentido idílico de reforma agrária que é a divisão tranquila, equânime da terra etc, etc. Como o senhor vê isso hoje?


Eu acho uma coisa muito difícil de falar no Brasil.


Porque o politicamente correto exige por um lado…


Mas uma análise digamos fria, não descomprometida, leva a pensar que a reforma agrária é uma herança romântica. Corresponde ao mundo que não existe mais, que no Brasil ainda se justifica porque tem muito analfabeto no campo.

Quando o senhor diz que ainda se justifica, significa que no Brasil ainda é possível pensar de alguma maneira na reforma agrária para alguns setores, num sentido parcial, numa escala menor, que dure o que possa durar?


Exato. Mas parte da esquerda, e entre meus colegas e meus alunos, alguns ficaram zangados, porque há toda uma forma de pensar obediente ao politicamente correto, à necessidade de slogans…

Então esse mito da reforma agrária, tal como ele vem sendo sustentado até aqui, não tem futuro.


Ele tem que ser revisto se a gente quer tratar a questão seria-mente, porque o mundo de hoje é o mundo da circulação, não é o da produção. Antigamente a produção se servia da circulação, hoje é o contrário: é a circulação que decide da produção. Por conseguinte é pouco entregar terras. A fixação na terra é ilusória porque não resolve realmente o problema. Quem ainda encontra solução são as cooperativas, que já são uma tendência à conservação. A reforma agrária também é um fator de modernização, então ela vai acelerar uma série de outros processos modernizadores que levarão à sua desagregação também. O que é que, a médio prazo, nós queremos no país? Dar comida a todo mundo, dar emprego a todo mundo, melhorar o nível de vida das pessoas. Não é obrigatoriamente reforma agrária.

Com a fixação obrigatória da família àquele pedaço, e a determinadas tecnologias que devem permanecer por toda vida, e coisas desse tipo. Porque a pequena gleba, de uma certa forma, nesse sentido clássico, acaba levando a isso.


É um obstáculo à inserção no progresso técnico e mesmo no progresso organizacional.

Agora, como se explica por exemplo o fenômeno dos sem-terra, o fenômeno ambulante, o fenômeno político nesse sentido. Essa circulação dos sem-terra, que aparecem dos vários lugares, que se multiplicam, que se organizam, que se submetem aqui e ali a manipulações de outros interesses; o que é esse fenômeno dos sem-terra?


Na realidade, eu não os estudei de perto.

Eu sei, mas a sua percepção à distância…


É uma forma dessa mobilidade atual dentro do mundo, favorecida por uma vontade política, legítima, porque eu creio que os sem-terra constituem uma boa coisa no Brasil, são os únicos que ainda podem protestar. Os outros brasileiros tem dificuldades de protestar por causa da relação de emprego.

Patronal. (risos)


Eles são como se tivessem procuração do resto do país para protestar. Daí a simpatia. Vejo muita gente que não está de acordo com eles, mas tem simpatia porque eles fazem por nós o trabalho de protesto. Mas eu não creio que a reforma agrária, como colocada romanticamente, tenha muito futuro não, porque…

O objeto da questão que está por trás, a terra, o pedaço de terra que é o objeto da conquista, é uma coisa que também não tem futuro.
O que é curioso é que na Europa o vigente no momento atual é a concentração das terras ou o convite a plantar menos, ou mesmo a não plantar. Mas os Estados, preocupados com a segurança nacional, estimulam a permanência de uma certa quantidade de produção. Cada país quer ter a sua produção nacional estratégica. No Brasil, onde essa ideia de nação está sendo rapidamente assassinada pelo aparelho do Estado, donde aparece como extremamente contraditório, porque nós produzimos para vender e aceitamos tranquilamente comprar maciçamente também quando a ocasião se apresenta; então essa ideia de relação obrigatória, entre um dado homem, e um dado pedaço de terra me parece ter muito pouca esperança. Tudo desemboca nas cidades. Há cidades que são chamadas de inchadas, não sei até que ponto são realmente inchadas, não sei até que ponto há uma saturação real ou não, mas aparecem como um problema essas cidades. Depois os mais baixos salários hoje tendem a ser urbanos, não são rurais. De modo que o mito da cidade não aparece mais como aquele eldorado que era…

Há 30, 50 anos atrás.


Há 50 anos atrás. A tendência da agricultura é rapidamente se mecanizar, se capitalizar. O campo aceita mais rapidamente o capital novo do que a cidade. O campo é mais receptivo, permeável ao grande capital, então rapidamente as famílias vão se estabelecer e vão descobrir que não tem muita chance. Exceto se se incluírem em um processo centralizador, como no caso dos frangos etc., onde o pequeno produtor está ali, mas é verticalmente obediente até nos processos do cotidiano da produção.

Planejamento da cidade, da indústria, do capital.


Do grande capital. Então manter essa ilusão da reforma agrária como solução me parece inadequada.

Eu tinha esse sentimento.


Pensando no atual mais do que no futuro. Pensar hoje centenas e milhares de pessoas.


Por isso que eu coloquei a questão dos sem-terra. A terra e o sem-terra, mas os sem-terras são a circulação. Há uma certa demanda reprimida que precisa ser satisfeita. É preciso dar um pouco de reforma agrária.


E se tornou uma frase política, respeitada até pelas direitas.

Muito mais por eles do quem quer que seja. (risos)


Só a extrema direita é que…

Rejeita.


Mas todo mundo quer a reforma agrária, então não há mal nenhum. Você divide a terra mas não tem que entregar daqui a pouco. O politicamente correto.

Professor, uma última coisa, dentro desse conjunto de variáveis; população é um tema de recente popularidade com o tal Summit Internacional que houve agora promovido pelos grandes organismos internacionais, essa coisa da explosão demográfica.


Não me assusta a explosão demográfica.

O senhor duvidava um pouco do inchaço da cidade.


Não me assusta. São Paulo, por exemplo, cresceu enriquecendo todo mundo.

O senhor acha que o grande capital do futuro é gente?


Eu creio que é isso mesmo: gente.

A fase popular da história quer dizer também isso.


Mais gente. E haverá um processo de acomodação.

A taxa de crescimento brasileiro está caindo.


Baixou muito.


É um dado da fase popular da história, tem que ter gente.


Tem que ter gente, é o que dá a possibilidade da efervescência.

Encher os estádios de futebol. (risos)


E também as casas de diversões. Quanto mais cheias, melhor.

Muito obrigado, professor.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *