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A nova onda feminista

O livro “Breve história crítica do feminismo”, de Carla Rodrigues, publicado nos Cadernos de Cultura e Pensamento, traz três ensaios que apresentam e refletem sobre o feminismo no Brasil, historicamente e também na atualidade. O fragmento abaixo faz parte do segundo ensaio, “Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer”:

Só para quem não estava prestando atenção direito a onda feminista que tomou as ruas desde o fim de 2015 pode ser espantosa e surpreendente. Basta olhar um pouco mais de perto para perceber que, nem espantosa – porque o movimento das ondas é mesmo esse, varrer o solo por onde passa – nem surpreendente, essa onda vem de longe e está se acumulando faz tempo. No momento em que escrevo este ensaio, a quarta onda feminista pode estar no seu ápice. Navegam nesse oceano jovens, negras, mulheres trans, lésbicas, prostitutas, intelectuais etc. Principalmente etc. Há um mar de gente nesses movimentos a conjugar os verbos erguer, acumular, quebrar, varrer e recomeçar.
A #primaveradasmulheres, assim batizada em 2015, veio embalada pelas manifestações de 2013, pela criação de coletivos de mulheres e pela retomada das ruas desde 2011, quando começou a se espalhar, a partir do Canadá, a Marcha das Vadias. Fomos gritar #foracunha e protestar contra o Projeto de Lei 5069;1 as negras exibiram seus cabelos no #orgulhocrespo e organizaram a Marcha Nacional das Mulheres Negras; ocupamos as redes para denunciar #meuprimeiroassedio; intelectuais ganharam espaço na campanha #agoraéquesãoelas; a #partidA se organizou como um novo movimento feminista a fim de aumentar nossa representação parlamentar; apoiamos a presidente Dilma Rousseff para pedir #ficaquerida, gritar #foratemer e denunciar a misoginia do golpe; a Marcha das Margaridas levou 100 mil mulheres a Brasília; o Think Olga liderou a mobilização #chegadefiufiu para dar um basta na naturalização do assédio, da violência sexual e da cultura do estupro; o transfeminismo confrontou o essencialismo das feministas radicais, as radfems [radical feminists], e reivindica espaço legítimo no movimento de mulheres; as radfems estão brigando contra a pornografia e a prostituição, e as prostitutas, lutando pelo direito de ter sua profissão regulamentada. Tudo isso acontece ao mesmo tempo, formando a quarta onda feminista. Ou seria a terceira? Ou não seriam ondas? Há razões para o feminismo ser contado em ondas? Houve a terceira onda e esta é a quarta ou esta é a terceira?
Nos feminismos, essas respostas são dadas por alianças e por tomada de posições.2 Do meu ponto de vista, as ondas são uma metáfora útil para denunciar o vaivém da opressão. Ao longo do tempo, os feminismos têm estabelecido essa relação dialética de avançar até onde o mar chega antes de começar a recuar. São movimentos que começam a subir a partir da calmaria instável para se lançar contra a dureza da misoginia, da violência, do preconceito velado que ora submerge, ora volta à superfície. Do ponto mais próximo do pior, vem o melhor; do ponto mais próximo do melhor, vem o pior; eis a relação entre as ondas do mar e as ondas das mulheres, entre a política feminista e a dialética.
As reivindicações por direitos vão e voltam e são, a cada vez, contemporâneas ao seu modo. Há novidades, uma onda nunca é igual à outra; e há repetições. Basta observar as ondas inundando a areia para perceber que há repetição na diferença, e há diferença na repetição. A plasticidade do machismo estrutural na sociedade brasileira consegue abrir espaço no mercado de trabalho e manter a desigualdade salarial entre homens e mulheres, criar leis contra violência doméstica e sustentar uma cultura de culpar a vítima pela violência, fazendo com que a discriminação das mulheres mude na aparência para não mudar na essência. Todos os dias a misoginia continua atribuindo valor universal à cultura masculina. Existem o futebol e o futebol feminino, a litera-tura e a literatura feminina, e nessas infinitas distinções há sempre a ideia de que masculino e universal se confundem numa só categoria, enquanto o feminino permanece no lugar secundário e específico onde deve ficar confinado.
A subalternidade feminina foi identificada pela cientista política inglesa Carole Pateman como o “Dilema de Wollstonecraft”: ou bem as mulheres se tornam cidadãs como os homens – e nesse caso ficam em segundo lugar em relação a eles – ou bem reivindicam direitos específicos para elas mesmas – e com isso estão condenadas a ser cidadãs de segunda classe no grande navio do poder. Antes presas ao espaço doméstico ou ao trabalho desqualificado, deixamos de ser exceção na esfera pública para viajar por mares nunca dantes navegados.
No começo dos anos 2000, o filósofo Gilles Lipovetsky me disse que o século 21 seria das mulheres. Fiquei surpresa. Até ali, carregava comigo a percepção do historiador Eric Hobsbawm de que o século 20 já havia sido o das mulheres. O direito ao voto foi se tornando universal nos países do Ocidente e, a este, outros direitos civis foram se somando. No entanto, enquanto Lipovetsky fazia sua profecia, os movimentos feministas enfrentavam uma crise provocada justamente pela constatação de Hobsbawm: tendo transformado as sociedades ocidentais, decretava-se o fim da necessidade dos movimentos feministas, de suas bandeiras, reivindicações, exigências e reclamações. Algo como “o que mais vocês querem?”.
Os ataques inimigos foram muito bem diagnosticados pela norte-americana Susan Faludi,3 feminista que denunciou a imensa quantidade de discursos retrógrados cuja intenção era nos fazer voltar para o mar sem fim das tarefas domésticas, do cuidado com a prole e com os cônjuges, sob a ameaça de perdê-los ou de nunca conquistá-los em caso de excesso de investimento em carreiras profissionais bem-sucedidas. O “cala a boca, mulherada” emergia exatamente no ápice da terceira onda feminista. Foi uma reação tão forte que ganhou adeptas inclusive entre mulheres, em práticas de ressignificação do trabalho doméstico não remunerado, o que logo se popularizou como um movimento de “volta ao fogão”, usado como prova de que as bandeiras feministas precisavam mesmo ser superadas.
Obstáculos como violência, violação do corpo, subalternidade, sexualidade, maternidade, educação, mercado de trabalho, discriminação por sexo, gênero, idade, cor da pele vão e voltam no tempo e no espaço, levando em conta também as imensas diferenças regionais entre as mulheres brasileiras. Se é verdade que as principais forças feministas estão lançadas nessa onda cujo ápice se torna visível hoje, é também verdade que esse acúmulo começa lá atrás, em uma vaga qualquer neste vasto oceano. Os movimentos feministas brasileiros não começaram em 2015, na Primavera das Mulheres; também não começaram 40 anos antes, em 1975, na lendária reunião na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que fundou a primeira organização de mulheres, o Centro da Mulher Brasileira (CMB); tampouco com Bertha Lutz e as sufragistas dos anos 1920 e 1930, ou mesmo com o pioneirismo de Nísia Floresta, no século 19. Quando se trata da história das mulheres, é mais prudente considerar que pode haver inúmeras ondas que nunca nos foram contadas, como a Revolta dos Malês, iniciada por mulheres negras na Bahia do século 19,4 ou a força da revolta das quilombolas no século 16.
Se contarmos quatro ondas, temos na primeira, cujos movimentos começaram ainda no século 18 e se desdobraram até a Segunda Guerra Mundial, a luta por direitos civis básicos, como voto e educação. Começou quando aquilo que a história chama de início da modernidade política — a Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade, fraternidade —separou homens e mulheres a partir de seus direitos civis. Duas europeias — a francesa Olympe de Gouges e a inglesa Mary Wollstonecraft — denunciaram a cidadania universal como forma de nos excluir. Dali em diante, as sufragistas realizaram um grande feito para os países ocidentais ditos democráticos. Nunca houve democracia representativa antes de as mulheres, metade da população mundial, conquistarem o direito ao voto.
A segunda onda desdobra a primeira, cresce nos anos 1960 e 1970, junto a outros movimentos libertários, e vai até o início dos anos 1990. Foi o tempo dos sutiãs queimados, do grito contra a violência, da revolução sexual e da reivindicação de direito ao orgasmo, da ocupação das universidades e do mercado de trabalho, da descriminalização do aborto, da lei do divórcio, da emancipação formal, da ampliação dos direitos da mulher em muitos países ocidentais, da criação do Ano Internacional da Mulher, pela ONU, em 1975, e da transformação da pauta feminista de regional para internacional. No Brasil pós-ditadura militar, as feministas da segunda onda lutaram pela anistia, conquistaram o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), fizeram o “lobby do batom” na Constituinte de 1988, quando extinguiram o pátrio poder, tornando homens e mulheres igualmente responsáveis pelas famílias, e escreveram direitos fundamentais, como o de planejar o número de filhos, incluindo os difíceis confrontos com as forças religiosas. Recentemente, um grupo de mulheres juristas foi responsável pela formulação do anteprojeto que resultou na Lei Maria da Penha. São mudanças institucionais e culturais que transformaram a cara do século 20, como se pode ver nas ruas das grandes capitais, apesar das inúmeras discriminações que ainda enfrentamos todos os dias.
Gente que vive no mar — pescadores, marinheiros, velejadores, surfistas — acredita que as ondas fortes sempre vêm em sequência de três, e a terceira é a mais intensa. A mais alta. A mais forte. A mais ameaçadora, portanto. Ao mesmo tempo, é aquela depois da qual virá a calmaria. Por um tempo imprevisível, o mar se acomodará e as ondas suspenderão os verbos que conjugam: erguer, acumular, quebrar, varrer. Foi assim ao final da terceira onda feminista. Parecia haver uma calmaria que levaria o feminismo ao seu final. A força do mar tinha deixado marcas indeléveis nas areias movediças das diferenças internas entre os feminismos. A quarta onda emergiu exatamente a partir da aproximação do pior. Surgiu do risco de perder territórios já conquistados. Em mar revolto, em vez de afundar, como queriam nossos inimigos, crescemos.
Ou não, se levarmos em consideração uma das percepções críticas mais argutas dos últimos anos, a da feminista norte-americana Nancy Fraser.5 Embora nunca tenham se constituído como unívocos, os movimentos de mulheres durante muito tempo mantiveram sua pluralidade interna nos porões dos nossos navios, de modo a não dar visibilidade ao equilíbrio instável sobre o qual os feminismos seguiam seus rumos. Desde que essa multiplicidade veio à tona, tem sido saudada como um avanço feminista. Só aos adversários interessa cobrar coerência interna dos movimentos de mulheres. Se o mundo é caos, heterogeneidade e confusão, então toda tentativa de dar univocidade ao poder apaga o conflito à força, em nome de um ideal de consenso no qual, na prática, vence a lei masculina. A filósofa Chantal Mouffe6 recupera o caráter agonístico da política justamente a fim de denunciar a farsa dos consensos, da tolerância que mantém a diferença como marcador de discriminação e dos discursos de inclusão cujo objetivo é manter as coisas exatamente como estão.
Inspirada pelo trabalho de Luc Boltanski e Ève Chiapello,7 Nancy Fraser percebe que há uma infeliz coincidência entre a segunda onda feminista e a expansão de práticas do capitalismo tardio. O uso do significante “coincidência” — recurso dos sociólogos franceses para não estabelecer relações de causa e efeito — possibilitou a Fraser articular as características da segunda onda com as do neoliberalismo sem cair na armadilha da relação de causalidade nem no argumento, tolo, de que os feminismos serviram ao capitalismo tardio. A argúcia de Fraser está em observar como a infinita plasticidade das práticas capitalistas tomou para si as transformações dos feminismos na cultura. Termos estratégicos como fragmentação, descentralização e desierarquização são os mesmos usados pelo pós-fordismo. Essa “perturbadora convergência” traz, no elogio à multiplicidade, o risco de dissolução. As diversas atuações feministas que apresento a seguir estão impregnadas por essa ambiguidade. São a emergência da quarta onda, a entrada em cena de cada vez mais pessoas, o elogio ao modo de fazer política sem a redução à falsa unidade do consenso. Mas no melhor também está o pior, no auge da onda também está seu maior risco de queda.

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