O livro “O movimento modernista no Brasil”, publicado nos Cadernos de Cultura e Pensamento, traz um olhar sobre Mário de Andrade (1893-1945) em seus últimos anos de vida, com dois ensaios e duas entrevistas publicados entre 1939 e 1944. Um deles, uma entrevista realizada para a revista Diretrizes, em 1944, mostra de forma bastante contundente o pensamento político do escritor. Reproduzimos ela aqui:
Figura sempre presente nos acontecimentos literários dos últimos vinte anos, Mário de Andrade, o admirável escritor de Macunaíma teve o seu nome bastante projetado, ultimamente, quando a publicação do seu prefácio ao livro de Otávio de Freitas Junior – uma forte e sincera página de profissão de fé democrática, repleta de confissões e afirmações das mais corajosas já manifestadas, de público, pelos intelectuais brasileiros do momento.
Procurado por Diretrizes, em São Paulo, Mário de Andrade, na entrevista que publicamos aqui, volta a reafirmar os seus pontos de vista, condenando abertamente todos os artistas e intelectuais que, de várias maneiras, vêm colaborando com os fascistas ou para-fascistas, estes últimos denunciados, recentemente, num discurso de Gilberto Freyre.
Pela sinceridade de suas afirmações, pela gravidade das acusações que faz o escritor paulista, esta entrevista de Mário de Andrade está, fatalmente, fadada a maior repercussão nacional. Em resumo, é um tremendo libelo contra a “grande parte da inteligência brasileira que se vendeu aos donos da vida”.
No prefácio do livro de Otávio de Freitas Junior, Mário de Andrade escreveu umas coisas muito sérias num tom quase patético. Coisas que precisam ser repisadas. “Eu afirmo” (estou citando o grande escritor paulista) “que a mocidade de hoje está de posse duma verdade. Nós todos, mas todos, intelectuais e dirigentes, sabemos que a mocidade que conta agora de vinte a trinta anos, está de posse de uma só verdade. Os que dentre esses moços desconhecem essa verdade, é porque fingem desconhecê-la. E há também muitos os… os outros. São os sujos, que se venderam, colocando-se da banda da contra-verdade. Porém eles mesmos, eles tanto como os dignos, gritam pelos olhos, pelas mãos, pelos poros, a existência dessa verdade. E os moços estão querendo exclamar a verdade que vai chegar, mas não podem. A mocidade está engasgada e regouga surdamente. Mas não é por ignorância, por inadvertência ou displicência que a mocidade engasgou. A mocidade não se engasgou. Engasgaram a mocidade”. Tudo isso, vamos e venhamos, é grave, muito grave mesmo. As palavras são exatas, espantosamente exatas. A mocidade quer falar e não pode. Tem um osso na garganta. E é por isso que Mário de Andrade empregou tão bem o feio e desusado verbo “regougar”. Só um verbo desses para definir o estado de espírito da mocidade. Da mocidade só? Não. De jovens, maduros e velhos. Todos “regougam”. Não há nada a fazer senão “regougar”. Oh, como é bom “regougar”! No setor literário, acontece também uma outra coisa, igualmente espantosa. Os que não “regougam”, xingam-se entre si, gastam energia bobamente. E é com infinita tristeza que a gente vê o nome limpo de um grande poeta agredido numa discussão estéril e besta, que faz lembrar a famosa “guerra do alecrim e da manjerona”. Calma, minha gente. Pra que discutir futebol e cinema silencioso, num momento destes? Essas discussõezinhas só têm servido para aumentar a confusão, que nos levou a conjugar, com um jeito esquisito e às vezes tragicômico, o infame verbo “regougar”. “Regouguemos”, pois, com decência.
Encompridei esta introdução para avisar que tomei uma entrevista com Mário de Andrade, que nada tem a ver com as guerrinhas literárias que se travam presentemente entre os “inocentes” de diversas praias cariocas. A coincidência com pessoas e fatos conhecidos é puramente ocasional e inevitável. Por isso mesmo, quero deixar bem claro que procurei o autor de Macunaíma sem segundas intenções. As palavras de Mário de Andrade são duras, vão doer em muita gente. Paciência. São palavras que precisavam ser ouvidas. Esta entrevista é bem uma definição de atitude do artista em face da guerra, uma espécie de Código de Ética. Poucos como o grande poeta e crítico de São Paulo estariam mais indicados para a tarefa difícil, que transformei no tema central desta reportagem. A vida literária de Mário de Andrade tem sido um lutar constante. Os artigos de crítica e polêmica que escreveu em jornais e revistas dariam para mais de seis volumes, os mais importantes deles serão publicados em livros, na edição das Obras Completas de Mário de Andrade, iniciativa da Livraria Martins. Não foi sem razão que o chamaram de “papa do modernismo”. Concordo que o apelido é bombástico mas não há dúvida que indica o papel do escritor: a sua linha de conduta, a sua ação prodigiosa, a sua fé na literatura, o seu valor moral. Por todos esses motivos, Mário deve ser considerado a figura mais importante dentre os agitadores do movimento. Mas não é só por isto. Hoje, decorridos mais de vinte anos depois da celebérrima Semana de Arte Moderna, vemos que foi a sua obra que encontrou maiores ressonâncias na turma da geração mais nova, justamente os que estão agora entre os vinte e os trinta anos, os tais da “mocidade engasgada”. Creio que dizendo isto explico suficientemente o porquê desta entrevista, que julgo muito oportuna. Das mais oportunas que se poderiam fazer, neste momento.
A condição de “papa” (desculpe, Mário) não dá imunidades a ninguém. Mário de Andrade não vive num altar, permanentemente endeusado pelos moços. Não vive trancado em nenhuma redoma. O escritor age, está agindo. Jamais se recusa aos novos. A sua palavra é sempre ouvida com respeito, porque parte dele. Assim foi com os rapazes da revista Clima, cujo artigo de apresentação, escrito por Mário de Andrade, encerra um grande sentido político e humano. Chama-se “A elegia de abril”. Parece o título de um poema. Esse artigo é um apelo à responsabilidade. O escritor não acredita nos homens da sua geração, põe fé nos moços. Penitencia-se. Talvez por julgar ter realizado muito pouco é que confia tanto nos moços. Ah, os moços engasgados, que “regougam”. No entanto, Mário de Andrade já fez muito. É imensa a significação da sua obra literária, abrindo caminhos na poesia, no conto, no romance, na crítica, no folclore, na música. Principalmente nas questões do estilo e da forma de expressão literária, quero dizer na técnica de escrever. Mário de Andrade é bem um mestre das novas gerações. Mas afinal esta introdução está tornando longa demais. E a entrevista? Vamos a ela.
A ENTREVISTA
Embora com os sinais de longa enfermidade ainda muito visível no rosto pálido, Mário de Andrade me pareceu remoçado quando uma dessas manhãs o procurei na sua casa da rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. É uma casa simples, sem luxo. Mas está cheia de quadros, de livros, de músicas. Lhote, Picasso, Portinari, Segall. Sem falar na coleção de desenhos e gravuras, que sobem a oitocentos mais ou menos. E os livros? Há de tudo. A parte principal é sobre arte e literatura. As músicas estão embaixo, numa sala pequena, que tem o retrato de Beethoven. Sei que existem para mais de vinte mil peças, todas devidamente catalogadas na biblioteca de Mário de Andrade. O escritor me recebe, a princípio, numa sala do andar superior, onde vi, pela primeira vez, os quadros de Anita Malfatti: “O homem amarelo” e “A estudante russa”, que tanta celeuma provocaram nos áureos tempos do modernismo. A exposição de Anita Malfatti, considerada como o início do movimento, foi um escândalo. Monteiro Lobato escreveu um artigo violento, erradíssimo, contra a pintura. Olho bem “O homem amarelo”. Por mais que procure, não encontro nada demais. Sem ser acadêmico, é um quadro normal. Por que teria despertado um tamanho furor em Monteiro Lobato? Aí que está uma coisa que não compreendo.
– Você acha normal, não é? Isso quer dizer que não fizemos o modernismo em vão. Para a época, “O homem amarelo” era uma coisa louca. Poucos compreenderam, quase ninguém aceitava. Anita é uma pioneira.
A entrevista começa assim por um desvio. Encontro o escrito mais loquaz do que nunca, satisfeitíssimo com a marcha da moléstia (úlcera no duodeno, para quem quiser saber). Durante os dias que esteve de cama, um mês precisamente, Mário de Andrade não interrompeu a sua atividade jornalística, escrevendo todas as quintas-feiras um longo artigo sobre música para a Folha da Manhã, de São Paulo. Agora escreverá com regularidade também no Correio da Manhã. Mostra-me o seu primeiro artigo, publicado no jornal carioca. É sobre Shostacovitch, o músico soviético, autor de uma sinfonia celebrando o heroísmo dos defensores de Leningrado e do Hino às Nações Unidas, composição mais recente, da qual ainda não tinha ouvido falar.
– No artigo sobre Shostacovitch, volto a tocar num velho refrão meu: a arte interessada. Acho que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer uma arte desinteressada. O artista pode pensar que não serve a ninguém, que só serve à Arte, digamos assim. Aí está o erro, a ilusão. No fundo, o artista está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos. O pior é que o artista honesto, na sua ilusão da arte livre, não se dá conta de que está servindo de instrumento, muitas vezes para coisas terríveis. É o caso dos escritores apolíticos, que são servos inconscientes do fascismo, do capitalismo, do quinta-colunismo.
Mário de Andrade fala explicado, como bom paulista.
RESPONSABILIDADE
A conversa cai na controvérsia “arte pura” e “arte interessada”. Mário de Andrade diz o que pensa a respeito:
– Até o século XVIII, o intelectual era um empregado dos príncipes. Vivia, portanto, preso aos seus Mecenas. Ele era pago para louvar. Com o século XIX, veio a arte livre. O intelectual se libertou. E com a liberdade se desmandou. Tornou-se um irresponsável. Foi o seu grande erro. Liberdade não quer dizer irresponsabilidade. Isso porque entre o escritor e o público há uma relação, um compromisso. É o público, ou melhor: a sociedade, quem protege o escritor, quem lhe dá tudo, inclusive dinheiro, até o aplauso, duas coisas indispensáveis para a vida de qualquer um. Por conseguinte, também do artista. Porque eu estou me referindo a todo artista de modo geral. Não só aos escritores, prosadores e poetas, ficcionistas ou não. Mas também aos pintores, escultores, arquitetos, músicos. Todos eles, todos nós, somos responsáveis. Perante o público, perante a sociedade. O escritor então é responsável até pela grafia das palavras, quanto mais pelo que transmite por elas. Se a sociedade está em perigo, conclui-se que o escritor tem a obrigação indeclinável de defendê-la. Infelizmente, não são muitos os que entre nós se capacitaram disso. Uns por não possuírem consciência profissional. Outros por não possuírem consciência de espécie alguma. Não há por onde fugir. Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais. É assim com a guerra, na luta das democracias contra os fascismos de todas as categorias. A guerra não é um teatro, que a gente possa assistir comodamente, como se estivesse sentado num camarote. Todos participam da luta, mesmo contra a vontade. Queiram ou não queiram. E se é assim o escritor tem de servir fatalmente: ou a um ao a outro lado. Os intelectuais brasileiros, que continuam colaborando em jornais fascistas, precisam se convencer de que estão errados. Não é só escrever para ganhar 200 cruzeiros por um artiguete e blazonar depois que continuam livres. Não continuam, esta é a verdade. Podem ser livres no primeiro, no segundo artigo. Aos poucos mil cordões invisíveis vão enleando o pobre até que um dia ele se verá perdido. É triste de dizer. Mas é este o caso da maioria dos escritores brasileiros, que colaboram nos jornais fascistas. Muitos desses escritores, bem sei, não são fascistas. Acabarão sendo. Pelo menos eles já estão servindo ao fascismo.
– Mas você, também, Mário, colabora na revista Atlântico.
– É verdade. Publiquei um artigo em Atlântico. Confesso que estou arrependidíssimo. Quando me dei conta do erro que estava cometendo já era tarde. Reconheço que errei. Dou minha palavra de honra que jamais cairei noutra.
EXPERIÊNCIAS
O assunto continua o mesmo.
– Já vê que falo por experiência própria. Mas quero mostrar que tenho sido coerente. Não faço arte pura. Nunca fiz. Neste particular, sinto estar em desacordo com amigos e camaradas queridos, amigos e camaradas que tenho na conta de mestres. Sempre fui contra a arte desinteressada. Para mim, a arte tem de servir. Posso dizer que desde o meu primeiro livro faço arte interessada. Naquele tempo, em 1917, se quisesse poderia ter arranjado um livro de versos menos ruim para aparecer em público. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de sonetos e poesias, que reputava melhores que os de Há uma gota de sangue em cada poema. Mas não. Senti que precisava publicar o meu livrinho de poemas pacifistas, escritos sob as emoções da guerra de 1914. Eles pareceram mais úteis que os sonetos e as poesias rimadas.
Lembro que o livro de estreia de Mário de Andrade traz o pseudônimo de Mário Sobral. Por que o pseudônimo?
– Por timidez – retruca o poeta mais que depressa. Todo mundo que me conhece sabe que eu sou um tímido. Os meus estouros não provam nenhuma coragem. São produtos da minha vida introspectiva. Vou me enchendo, enchendo. De repente, estouro.
E é assim que ele me faz uma confissão interessante:
– É bem possível que eu nunca tivesse publicado uma só linha se não tivesse a certeza de que a minha literatura poderia ser útil. Não pretendia, de fato, publicar nenhum poema de Pauliceia desvairada. Até que um dia percebi que as minhas poesias tinham capacidade para irritar a burguesia. Foi o bastante. Pelo resto de minha carreira literária, observei a mesma linha de conduta. Só publico o que pode servir. Todas as minhas obras têm uma intenção utilitária qualquer. As coisas de pura preocupação estética que fiz durante algum tempo, eu destruí. Só me interessavam a mim, como aquisição de técnica pessoal.
E Mário de Andrade repete:
– A arte tem de servir. Venho dizendo isso há muitos anos. É certo que tenho cometido muitos erros na minha vida. Mas com a minha “arte interessada”, eu sei que não errei. Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte, da qual nunca me afastei, foi que me levou, desde o início, às pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes com sacrifício da própria obra de arte. Cito, para esclarecer, o meu romance Amar, verbo intransitivo. Não fosse a minha vontade deliberada de escrever brasileiro, imagino que teria feito um romance melhor. O assunto era bem bonzinho. O assunto porém me interessava menos que a língua, nesse livro. Outro exemplo é Macunaíma. Quis escrever um livro em todos os linguajares regionais do Brasil. O resultado foi que, como já disseram, me fiz incompreensível até para os brasileiros. Bem sei que minha literatura tem muito de experimental. Que me importa. Disso não me arrependo.
CONSCIÊNCIA
Para Mário de Andrade, o que importa mais que tudo é agir. Daí a sua admiração por um Valentim Magalhães, literato medíocre, mas ativo.
– Valentim Magalhães fez o diabo. Meteu-se em tudo quanto foi movimento literário, disse-me ele.
Mas o caso do poeta de Remate de males é muito diferente. Valentim Magalhães talvez agisse apenas em função do seu temperamento buliçoso. Mário, ao contrário, sempre agiu conscientemente. Bem que pode falar assim, quando mais uma vez se refere ao modernismo:
– Eu bem sabia que não bastava ser espontâneo. Era preciso ter consciência profissional, também. Quando empregava o “me” começando as frases, não era só pelo gosto de escrever diferente. Eu sabia o que estava fazendo. Para isso, estudei. Procurei honestamente uma maneira de escrever em brasileiro. Acho que encontrei este meio. Pelo menos, ajudei a abrir o caminho.
– Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro?
– Da língua, não. Da fala brasileira. Não tinha a pretensão de criar uma língua brasileira. Nenhum escritor criou língua nenhuma. Anunciei o livro, é verdade, mas nunca o escrevi. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. É ainda muito cedo para escrever-se uma Gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos do escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrário, como muito bem observou um dos redatores de Estética, não me lembro se Sérgio Buarque de Holanda ou Prudente de Morais Neto. Estávamos criando o “erro brasileiro”. Quando falo em escrever certo, estendo a questão até o problema ortográfico. Considero um problema de ordem moral. É mais uma responsabilidade que se acrescenta ao ofício de escrever. Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever “cavalo” com três eles, isso não tem importância. Precisamos é de acabar com a bagunça. Não há coisa mais irritantemente falsa do que a ortografia inglesa, por exemplo. Não compreendo porque a palavra “right” se escreve com “g-h-t”. No entanto assim é que está certo. Escrever de outra forma na Inglaterra ou nos Estados Unidos é diploma de ignorância. Aqui, não. Todo mundo escreve como bem entende. O Estado da Bahia tem “h”. A baía de Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil. E de certa forma tem impedido a muito escritor de formar uma verdadeira consciência profissional.
PARALELO
Voltamos novamente a falar sobre “arte interessada”. Quero saber que relações existem entre “arte interessada” e liberdade de pensar e de escrever, no entender de Mário de Andrade. Aí o escritor não quis mais conversar. Preferiu escrever a resposta. No dia seguinte, fui buscá-la. É a seguinte:
– O assunto é tão grave e de tamanha complexidade que eu seria leviano pretendendo sintetizar tudo isso no limite duma entrevista. É meio desagradável a gente parecer que está fazendo propaganda de suas próprias obras, mas a resposta a certos aspectos da sua pergunta está implicada em alguns dos meus ensaios, ajuntados no Baile das quatro artes e nos Aspectos da literatura brasileira. Qualquer análise psicológica, mesmo leve, da manifestação artística, nos convence de que a arte é sempre interessada, e que toda obra de arte é, em última análise, “obra de circunstância”, isto é, nascida duma circunstância ocasional, social ou individualista, a que o artista atribui o seu interesse. Neste sentido, não é a arte que se modifica, mas a qualidade do interesse que leva o artista a artefazer. É quase exclusivamente na civilização cristã que a inflação do individualismo permitiu essa perniciosa vacilação de qualidade no interesse que, de social que sempre foi, passou muitas vezes a confidencial e individualista. Quanto ao mais, ensaios como a “Elegia de abril” e “O movimento modernista” provam que não sou nenhum místico da liberdade pensamento, mas estou convencido que noções como essa ou como democracia implicam um certo número de princípios sem os quais elas deixam de existir. Não é possível a gente imaginar democracia sem opinião pública, assim como não é possível liberdade de pensamento sem aquisição duma técnica de pensar, coisa muito menos frequente do que se pode supor.
E explicando melhor o que ficou dito atrás:
– E de fato quando eu considero que uma grande parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida, estou longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de assinar uma transação com contratos legalizados em cartório. Mas por não possuir uma legítima técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega facilmente a sofismas e confusionismos de mil e uma espécies, de que é malignamente a maior essa tal de “arte pura”. Veja bem: não nego a possibilidade nem o valor do que chamamos “arte pura”, estou dizendo é que o intelectual se utiliza dela para se salvaguardar e se livrar de seus deveres morais não só de homem, mas de artista. E o intelectual se retrai na sua pseudopureza do seu pensamento – pensamento!… – enquanto a vida se torna cada vez mais infame lá fora, e o homem enquanto mais escravo. Mas o intelectual imagina que ele (veja bem: só ele!) não é escravo, pois que o seu pensamento, a sua arte é livre! Pois ele não pode compor uma sinfonia “arte pura”, um soneto sobre o amor ou sobre coisa nenhuma, um quadro com peixe e margaridinhas? Pode sim. “Minha arte é livre”! E o intelectual sofisma que tem liberdade de pensamento, simplesmente porque não tem técnica de pensar suficiente que lhe dê coragem pra levar o seu pensamento até o fim. Porque na verdade a pseudo-liberdade dele consistiu em sequestrar das suas manifestações intelectuais todos aqueles assuntos momentosos, cuja qualidade de interesse era social, que o haviam de deixar desagradável com o chefe da repartição em que trabalha, o diretor do jornal em que escreve, e mesmo lhe trariam complicações com as gestapos.
PARTICIPAÇÃO
Ainda em resposta à mesma pergunta, continua Mário de Andrade:
– Porém, o intelectual não fica só nisso não. A sua escravização aos donos da vida ainda é mais confusionista e mais indecente. Ele também “participa”. Pois ele já não afirmou, num artigo, que era antinazista? Pois outro dia ele já não aplaudiu todo o mundo porque o Brasil entrou na guerra? Ele já não pagou o imposto de tal? Ele já não achou, naquela conversa de bar, que devemos nos precaver contra os possíveis futuros imperialismos das grandes democracias? Tudo isso ele já fez, o herói! E o intelectual descansa, imaginando que o seu dever está cumprido, apenas porque ele cumpriu metade (a metade mais fácil) da sua responsabilidade: a responsabilidade para consigo mesmo. Mas a sua responsabilidade para com o seu público, essa ele não cumpriu nem cumprirá. Porque está é que é difícil, esta é que impõe mil sacrifícios (de que não é o menos doloroso, reconheço, o sacrifício da sua própria arte), esta responsabilidade é que impõe o exercício do seu não-conformismo. Porque o não-conformismo do intelectual não está apenas em gritar e assinar: “Sou antinazista!”, “Sou pela democracia!”, sou isto ou aquilo. Isto quando muito é ser tagarela. O não conformismo implica não apenas a reação, mas a ação. E é nesta ação que está a responsabilidade pública do intelectual. A arte é exatamente como a cátedra, uma forma de ensinar, uma proposição de verdades, o anseio agente de uma vida melhor. O artista pode não ser político enquanto homem, mas a obra de arte é sempre política enquanto ensinamento e lição; e quando não serve a uma ideologia serve a outra, quando não serve a um partido serve ao seu contrário.
O escritor particulariza ainda mais o seu ponto de vista:
– Basta de falar em “tese”, meu amigo. Demos de barato que a arte é desinteressada, que o artista é normalmente um ser à parte, um indivíduo que pela natureza do seu “status” pode não ser participante, pode ser um “clerc”. Se alguém quiser, eu lhe concedo tudo isto. Mas “normalmente”, entenda-se. Eu aceito que um intelectual se isente da guerra franco-prussiana, da guerra russo-japonesa, e até, mais dificilmente já, da guerra do Transval ou da sino-japonesa. Eu aceito que um intelectual brasileiro hesite em tomar partido diante de Palmares. Admito, compreendo, aprovo e aplaudo a sua não-participação direta nas revoluções como as de 1924, 1930 e ainda mais 1932. Mas se estas guerras e revoluções poderão estar dentro das condições normais de organização social de uma civilização determinada, o mesmo não se dá em certas condições absolutamente anormais da vida, em que é a essência mesma duma civilização que periclita, como na luta entre cristãos e mouros, ou periclita a natureza mesmo do homem, como na atual luta contra o nazismo.
Deixa, por fim, bem claro onde quer chegar:
– Em momentos como estes não é possível dúvida: o problema do homem se torna tão decisivo que não existe mais o problema do artista. Não existe mais o problema profissional. O artista não só deve, mas tem que desistir de si mesmo. Diante duma situação universal de humanidade como a que atravessamos, os problemas profissionais dos indivíduos se tornam tão reles que causam nojo. E o artista que no momento de agora sobrepõe os seus problemas de intelectual aos seus problemas de homem, está se salvaguardando numa confusão que não o nobilita.
Diretrizes, 6 de janeiro de 1944