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Entrevista: Thiago Amud

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Leonardo Lichote e Paulo Almeida, em 2019, e publicada originalmente no Cadernos de Música – Thiago Amud (Revistas de Cultura, 2020).

Thiago, qual a sua lembrança musical mais antiga?

Meu pai tocando violão na sala que dava para um mato, no apartamento em que eu morava na Urca com ele e com a minha mãe. Ele tocando violão no escuro, anoitecendo, fumando um cigarro. E aí eu no escuro chegava lá, via aquela guimba e ele tocando violão. Eu achava aquilo triste. Achava muito triste o som com o entardecer. Me deixava um pouco melancólico. Aí eu saía correndo: “Pára!”. Tapava as cordas do violão do meu pai.

Você tinha quantos anos?

Quatro. Eu acho que fiquei tapando corda do violão do meu pai até os sete anos.

E o que ele tocava?

Na época ele estudava violão clássico e tocava Tárrega, Leo Brouwer. E fazia umas músicas, cantava. Eu também ouvia muito por conta dele os discos do Elomar. O Cantoria, com Xangai, todos aqueles discos. Jatobá, Mão Branca, Paulinho Pedra Azul, essas coisas. E minha mãe ouvia muito disco. Essa mesma sala é a que tinha o som, os livros do meu pai, da minha mãe. E dava para um mato, para a rua São Sebastião, ali na Urca. Que foi, inclusive, um caminho muito antigo dos portugueses no Rio de Janeiro. É uma rua alta, embaixo era tudo mar. Hoje é aterro. Eu nunca estudei sobre isso, mas eu cresci ouvindo que as pessoas falavam que é a primeira rua do Rio de Janeiro. Eu sei que não é, porque a fundação do Rio não foi ali. Mas eu acho que, como teve ali perto a batalha contra os franceses, deve ter a ver com isso. Eles abriram um caminho ali no mato, em cima da pedra, não sei bem como é. E o meu apartamento tinha uma varanda grande que dava para essa rua alta, e entre a rua alta e a minha varanda tinha um matagal em declive. Era essa a sala do som e dos livros. E meu pai tocando violão ali no entardecer.

E quando você parou de tapar as cordas do violão do seu pai, como é que foi isso? Como é que foi essa mudança de parar de tapar as cordas do violão do seu pai e começar a olhar o violão, a querer o violão?

Eu gostava muito de música. Eu acho que o que me deixava triste na coisa do violão do meu pai tinha a ver com eu achar naquele momento ele muito sozinho, muito imerso numa realidade… Acho que no fim das contas era essa coisa quase imaterial, o mundo ia se desvanecendo na escuridão, entendeu? Então isso me deixava triste. Mas não é que eu não gostasse de música. Então eu acho que teve uma coisa contínua entre o gostar da música e pegar o violão. Mas eu comecei a querer tocar violão com 12 anos e peguei no ano seguinte, para tocar canções do Caetano.

Qual você tocou primeiro?

“Terra”. A primeira música que eu toquei no violão.

Provavelmente também porque tem um acorde que se prolonga indefinidamente. Para quem está começando ajuda.

É um sol maior que fica. Exatamente. As músicas do Caetano são muito boas para iniciar violão, porque tem uma gama enorme de modos com os quais ele trabalha. A própria “Terra” tem o modo lídio, modo mixolídio, na composição. Uma ambiguidade entre o modalismo de sol e o tom de dó. E eu não sabia nada disso, ia tocando e fui aprendendo. Eu não tive professor de violão. O meu pai, que poderia ter me dado alguma aula, me ensinou dois acordes. Eu errei, ele falou assim: “Ah, meu filho, não aguento não”. Aí, eu virei autodidata. Me deram o Songbook nº 1 do Caetano, fui tocando, aprendendo aquelas músicas. O Caetano era uma coisa muito ouvida pela minha mãe. Ele, o Djavan. Aí me lembro um dia que teve um almoço de domingo. Isso antes de eu pegar violão, no período onde eu ainda me entristecia com o violão do meu pai, eu acho. E colocaram para tocar uma coletânea do Gil. Eu estava na sala e cheguei perto para ouvir. Eu me lembro até das músicas: era “Procissão”, naquela gravação com os Mutantes, “Domingo no parque”, “Bat macumba”… Eu lembro até da ordem da coletânea… “Geleia geral” e “Aquele abraço”. Era o lado A. Eu me lembro que ouvi aquilo tudo, acabou “Aquele abraço”, eu virei para os meus pais e falei: “O que é isso?”. Porque aquilo me dava uma alegria! Essas cinco músicas me davam uma felicidade, um negócio assim que eu nunca tinha… E achava bom, vigoroso, tudo o que a gente sabe que é mesmo. Isso aí eu acho que foi o que me… Mas antes eu já sabia, por exemplo, cantar “Águas de março” inteira com sete anos. Por que eu aprendi assim? Não sei, eu tinha uma memória para música muito grande.

Meu avô, pai da minha mãe, quando eu era muito pequeno, muito pequeno mesmo, porque ele morreu eu tinha quatro anos, gravava umas fitinhas, que até tem lá em casa, chamadas “Conversinhas com Thiago”. E tem do número um ao número doze. Desde quando eu nasci, o registro dos sons da minha voz. E eu vejo lá que ele me estimulava muito com música. Botava música, pedia para eu cantar música. Aí depois eu fiquei sabendo que meu pai tocava para a barriga da minha mãe. Eles se lembram de uma reação muito acentuada toda vez que ele tocava. Então eu acho que teve essa coisa do meu pai tocar para a barriga da minha mãe, do meu avô me estimulando com música: “Ouve isso!”. Coisas da Clara Nunes. Engraçado, meu avô gostava da Clara Nunes e do João Bosco.

E depois tem a história do seu pai cantando para você “Tropicália”, né?

É, com 11 anos ele cantou na rua “Tropicália” para mim. Porque era a época da geração cara-pintada contra o Collor, querendo o impeachment do presidente, e eu estava muito querendo que o Collor caísse. Porque eu sou filho de comunista, né? Meu pai é comunista e minha mãe tinha sido brizolista. Então tinha uma coisa de casa de esquerda.

Engraçado que você fala do seu pai que ele era comunista, sua mãe tinha sido brizolista. Já não era mais?

Já não era mais, porque depois ela acabou sendo funcionária do Brizola e teve lá um entrevero no sindicato. Perceberam uma coisa estranha em relação ao próprio Brizola. Aquela coisa do personalismo que o próprio Brizola trazia, como o Lula trazia.

Isso no primeiro governo do Brizola aqui no Rio, em 1982?

É, em 1982. Eu tinha dois anos na época, mas me lembro da minha mãe brizolista. Na época dos caras-pintadas, eu já tinha 11 anos. É aquela coisa engraçada dessa complexidade brasileira, porque aí, de repente, a Rede Globo faz uma minissérie. Hoje a gente sabe o que é, do ponto de vista político, o que representou aquela minissérie. É o momento onde a Rede Globo afirma a dissensão em relação ao Collor, traduzindo simbolicamente isso naquele revival que Anos Rebeldes fez das passeatas que vão se contrapor à ditadura militar. E aí aquilo estimulou os caras-pintadas. A minissérie abria com a música do Caetano, “Alegria, Alegria”. Eu já conhecia as coisas do Caetano, do Chico. Mas, engraçado, eu não conhecia “Alegria, Alegria” e fiquei impressionado com aquela sonoridade aos 11 anos. E aí, um dia, caminhando na rua com meu pai, na Gávea, meu pai e minha mãe tinham recém-separado, ele cantou para mim a música “Tropicália”. Ele falou: “Você gosta de ‘Alegria, Alegria’, olha, tem essa aqui mais bonita ainda”. E cantou “Tropicália”.

Cantou à capella para você?

À capella para mim. Cantou afinado, lembrando a letra inteira. Hoje ele não lembra, como não lembra nem direito desse momento. Quando chegou na imagem da “criança sorridente, feia e morta estende a mão”, abriu-se um rasgo em mim. Engraçado, eu tinha 11 anos. Parece que naquele momento se conjugaram elementos que depois eu vim desdobrando no que eu faço. Porque tinha a coisa do modalismo nordestino. Modo dórico, que é dolorido, né? E que complementa com o modo mixolídio, que é a primeira frase, segunda frase. Tinha isso, que me calava muito fundo. Eu não sabia nem que isso era nordestino. Com aquele atropelo métrico da canção e com essas imagens que eu ficava perguntando: “Pai, mas o que significa isso?”. E aí ele tentava descrever do ponto de vista do significado mesmo. Porque eu ainda não sabia que a questão ali, muito mais do que o significado, era o significante. E, muito mais do que o significante, era a alegoria. Não sabia, mas eu intuía esse troço todo. Isso que é muito doido, porque era muito pequeno, muito novo. Eu intuí de uma forma muito forte o que foi a Tropicália antes de me falarem qualquer coisa sobre o movimento. Eu intuí, por exemplo, que a Tropicália, entre outras coisas, autorizava os criadores a conjugar as imagens poéticas em uma justaposição que depois eu vim saber que é bastante barroca, de modo a extrair o conflito máximo dessas imagens. E com esse verso, pela violência dele, “uma criança sorridente, feia e morta estende a mão”, eu me senti autorizado a um dia fazer alguma coisa, como a coisa que eu faço hoje, já naquele momento.

Na mesma época, eu vi o show Circuladô Ao Vivo, do Caetano. Foi o primeiro show que eu vi na vida. Ele estava fazendo 50 anos e eu vi no Canecão, com minha mãe e minha tia. Era um show extremamente vigoroso e violento, do ponto de vista da palavra. E não só da palavra, dos gestos e da musicalidade também. Eu me lembro que abria com um solo longuíssimo do Morelenbaum, e que Caetano cantava algumas músicas novas, “O cu do mundo” e a música “Circuladô de Fulô”, que ele cantava virando os olhos, como se fosse um cego cantador. Eu com 11 anos vendo aquilo e aquelas imagens todas, aquela torrente, aquela musicalidade nordestina também, as pinturas rupestres atrás, que é o cenário do Helio Eichbauer. E depois teve uma coisa muito curiosa: acabou o show, aí pediram bis, e ele cantou “Estrangeiro”. Sete minutos de letra, e a plateia inteira cantando junto. Isso com 11 anos. Aos 12 anos, eu já sabia cantar todas essas músicas. Todas. “Estrangeiro” de cor, tudo. Eu conhecia a obra do Caetano inteira aos 12 anos. O que ele tinha composto até ali.

Você falou que escolheu “Terra” para tocar. “Terra” é uma música na qual a letra é fundamental e é quilométrica. É uma escolha que mostra um apreço pela letra, pela palavra.

A letra me levou para o coração de uma musicalidade muito brasileira, muito radicada, nesse primeiro momento, principalmente no modalismo nordestino. Porque tanto “Terra”, que tem uma coisa entre Nordeste e Índia, passando pela Arábia, quanto “Tropicália” são músicas muito modais. Depois, aos 12 anos, eu fui ouvir o Joia, que é um disco que eu estranhei muito, mas que ficava ouvindo. Meus pais já estavam separados e eu morava na casa onde hoje mora a minha mãe e a minha tia, que era na época a casa da minha avó. Minha mãe foi morar com ela. E tinha um quarto, o quarto da minha tia, onde tinha um aparelho de som, um toca-CD. O toca-CD era dela. Eu ia no Shopping Rio Sul, que era lá perto, com a minha mãe e toda vez pedia para ela comprar um CD. O CD era caro naquela época e a gente não tinha dinheiro, mas eu sempre pedia e sempre eram discos do Caetano. Eu fui escolhendo pouco a pouco, fui formando a obra e fui ouvindo. O Joia, eu ouvi aquilo e me senti atraído e estranhei. Não sabia que as composições podiam ser tão curtinhas e tão circulares. Aquilo era novo para mim. Eu não entendia muito onde é que estava a poética daquilo, porque é que aquilo se sustentava como obra, como canção. Diferentemente das coisas do Chico Buarque, que eu também já conhecia. Aos 11 anos eu já ouvia de tudo. Tudo! Tudo que aparecia eu estava ouvindo. Não era só Caetano.

Você ouvia rádio também?

Rádio eu ouvi um pouco. Eu gostava de música de novela, gostava de coisas que apareciam de rock. Mas, na real, acontecia um negócio curioso, porque tanto a rádio quanto cinema, principalmente cinema… Vou falar um negócio de cinema aqui. Eu não gostava de cinema até os 17 anos. Porque eu sentia que o cinema, até mais que a rádio, era uma coisa compartilhada demais em uma faixa de percepção que não era muito a minha. Não tinha uma necessidade íntima minha. Parecia que era um negócio que estava flutuando como uma espécie de ruído geral que todo mundo acolhia igualmente, massificadamente.

Uma banda muito larga…

Uma banda muito larga. E aquilo intuitivamente me incomodava, me repelia. Rádio um pouco, o cinema mais ainda, porque eu achava que cinema era coisa de americano. Havia alguma doutrinação antiamericana por parte dos comunistas que iam na minha casa. Meu pai era sindicalista, filiado ao PCB. Engraçado isso, eu achava mesmo. E foi vindo no contínuo eu achar isso, porque, de certa forma, isso me leva hoje a pensar também na questão do domínio norte-americano sobre a cultura brasileira. Em termos menos ingênuos, mas parecidos ainda. Existem coisas que as pessoas sentem como uma língua geral globalizada que, na verdade, é a cultura norte-americana. Mas enfim, voltando. Eu sentia isso na rádio, na televisão e no cinema. Se eu ouvia rádio? Ouvia pouco.

Mas voltando: eu ouvia o Joia sentindo essa coisa. Não entendia porque aquilo dali, aquelas canções se sustentariam, se elas eram tão antidiscursivas, tão circulares, não pareciam assim… não se diferenciavam muito de música tribal, algumas daquelas músicas. Depois eu vim a saber, o Caetano disse que aquela “Pássaro um, pássaro pairando” é um canto do Xingu no qual ele botou uma letra. E aí depois eu comprei o “Araçá azul”.

Mas quando você escutava os discos do Caetano, você sabia a sequência, a ordem? Qual tinha sido o primeiro, qual tinha sido depois?

Sabia, os anos. E eu não sabia só os anos não. Porque eu comecei a fazer um negócio também com 11 para 12 anos. Com 11 anos eu ainda não saía sozinho, só no bairro. Tinha uma coisa de família superprotetora. Pegar um ônibus e ir para o centro da cidade sozinho, comecei a fazer isso com 12 anos, aos onze ainda não. Então eu me lembro que eu pedia para a minha mãe e para o meu pai para eles me levarem no Museu da Imagem e do Som e eu ficava lá a tarde inteira. Fiquei várias tardes lá lendo. Pegava a pasta Paulinho da Viola e ficava lendo tudo que era manchete, matéria, ensaio, vendo vídeos, estudando. E eu fazia isso com 11 anos por amor à coisa, entendeu? Eu me lembro que tinha um segurança que falava assim: “Meu filho, você é louco. Nesse sol aí, vai para a praia”. E eu ali na Praça XV, no Museu da Imagem e do Som. Então, não é que eu soubesse só a ordem da coisa dos discos, eu sabia os contextos todos, eu sabia a relação da Tropicália com a poesia concreta, eu sabia sobre poesia concreta, eu sabia sobre o cinema do Glauber, eu sabia o sentido da coisa do João Gilberto e do pré-João Gilberto. Eu sabia da coisa. Muito cedo eu fiquei sabendo disso tudo.

Mas você não se interessava então pela televisão e pelo cinema como uma manifestação muito clara do interesse tropicalista? A televisão brasileira meio que resolve na prática muitas das coisas que conceitualmente o tropicalismo estava propondo. Se você for sair da superfície, ou mesmo na superfície dela, ela lida com isso. O próprio rádio lida. Havia um fascínio enorme dos tropicalistas, de Gil e Caetano, com o rádio.

Mas eu naturalmente me interessei mais pelo ruído do que pela informação. Eu gostava das coisas que interrompiam o código. Por exemplo: “uma criança sorridente, feia e morta estende a mão” mais do que “eu vou, por que não, por que não?”. Eu sempre me inscrevi mais ali, mais uma mirada super crítica do que no peito aberto do enfrentamento da aceitação radical da cultura de massa. Então, por exemplo, quando eu ouvia a orquestração do Rogério Duprat para “Acrilírico”, aquilo me interessava mais do que “Baby”, que eu acho linda. Hoje eu acho mais bonito tudo isso, hoje o meu ouvido está mais consonante do que quando eu era muito novo. Era uma coisa que muito naturalmente me fazia ficar emocionado o “olhar colírico, lírios plásticos” e tem um sujeito emitindo um traque, que é o Duprat, né? Essas coisas todas, música atonal e concreta, eu gostava muito. Aí depois Gil. Ao mesmo tempo Gil. Aqueles discos do Gil daquela época, extremamente jimi hendrixianos. Na mesma época eu comecei a ouvir o Jimi Hendrix e os Beatles profundamente. O barulho, o ruído como sinal. Eu começava a achar todo esse negócio da televisão como uma codificação sem risco. Você tem que estabilizar, estabelecer padrões e compartilhar para que exista, inclusive, a coesão massiva. E isso eu achava chato, me lembrava os domingos em família, me lembrava panetone no Natal.

Tem uma coisa muito curiosa, porque o Caetano e os tropicalistas estão trabalhando com uma televisão ainda nessa infância, ainda no seu caos infantil. A televisão dos anos 1990, que você conheceu, já é uma televisão totalmente institucionalizada.

Quando os tropicalistas dizem, por exemplo, que gostam tanto do Chacrinha, não é porque o Chacrinha era a televisão, era porque o Chacrinha violentava a televisão à sua maneira também. E realmente acho que mudou. Mas vou te falar uma coisa. Por exemplo, eu me lembro que uma vez na televisão, olha mais uma vez meu pai aí. Ele estava vendo a TVE e eu também, naquela época. Várias epifanias aos 11 anos. E numa madrugada eu acordei em um apartamentinho que ele tinha na Gávea. “Pai, o que é isso?”. Eu vi umas imagens, um negócio preto e branco, eu nunca tinha visto nada parecido. Uma cruz imensa numa praia, um sujeito vestido de negro e um sujeito carnaval, assim, na beira do mar. Um sujeito quase travestido. Era Terra em Transe. Eu acordei naquela cena do Terra em Transe. Eu falei: “O que é isso?”. Meu pai falou: Terra em Transe. Eu falei: “O que é isso?”. “É um filme”. Eu fiquei olhando, não entendia absolutamente nada e aquilo me emocionou, me atravessou. E logo depois eu vim saber a relação disso também com a Tropicália. E comecei a ler muito livro.

Até que aos 15 anos eu topei com um professor meu de geografia, chamado Julio, que escrevia peças de teatro. Eu já estava compondo, e ele me chamou para fazer a música para uma peça de teatro dele, eu fiz, musicando coisas dele. Eu era muito rebelde na sala de aula. Uma rebeldia meio sozinha. Não era uma rebeldia que juntava um grupo. Eu ficava questionando o porquê do sistema de provas. Mas não era como uma malandragem para não estudar, era um questionamento filosófico mesmo. E o Julio foi sacando e acreditava também nessas questões que eu levantava. Porque ele era um cara lido, de psicanálise, filosófica, poesia, ele próprio poeta. E aí eu comecei a frequentar o Julio e ele começou a me dar livros para ler, muitos livros.

Foi o Julio que me apresentou Oswald de Andrade, Nelson Rodriques, Freud, Lacan, Nietzsche. Através dele, também, eu cheguei no cinema do Buñuel, O Fantasma da Liberdade. Termina com um avestruz olhando. E eu senti uma coisa parecida com a “criança sorridente, feia e morta estende a mão”. Acabou o filme e aquele avestruz. Eu me senti representado sinceramente no cinema pelo surrealismo do Buñuel, por aquele corte na comunicação do que se espera de um contínuo, de uma história contada. E um questionamento basilar mesmo, dos símbolos que regem a sociedade burguesa. Aquilo, de cara, me despertou, me moveu, me convulsionou e me converteu ao cinema.

Eu comecei a procurar nas coisas contemporâneas outras vertigens como essa. E comecei a encontrar, a fazer, a produzir. Mas partiram dessas provocações que já na minha geração eram passadas. O filme do Buñuel, ao qual estou me referindo, era de 1974. Eu assisti em 1997. Os livros que o Julio me dava eram do começo do século. De base, eu tive uma formação de velho.

O contemporâneo não estava em você neste momento?

Eu acho que o contemporâneo chegou quando eu comecei a compor, com 13 anos. Não, foi um pouco depois, quando eu comecei a frequentar colegas e a tocar em festival de música estudantil. Eu participei de quatro edições consecutivas do festival e ganhei as quatro, duas com melhor letra e duas com melhor composição geral. O prêmio me foi outorgado pelo Paulo César Pinheiro. Era um festival do Hélio Alonso, promovido pelo professor Julio Machado, que era da Universidade Hélio Alonso, eu era da escola Hélio Alonso. Era outro Julio, não o meu amigo. Ele era professor de história e era o Xangô do Salgueiro. Então quando ele dava aula de história antiga, ele ia vestido de Cleópatra. Era uma figura maravilhosa. E quando eu participei ele já promovia o festival há 30 anos. Nos anos 1970, a Fátima Guedes, o Emílio Santiago, foram alunos dele na faculdade. O festival já era tradicional nesse meio de festivais estudantis. E o júri era Paulo César Pinheiro, Elza Soares, João Nogueira, Paulinho da Viola, Elke Maravilha, que eu conheci e de quem fiquei amigo. Fiquei amigo do Sasha, marido dela.

E como eu ganhei o festival alguns anos seguidos, comecei a ser visto pelos colegas. Porque antes teve circunstâncias da minha vida meio tristes da adolescência, que me deixaram muito entocado. Entocado de toca mesmo. Precisei ficar numa toca. E aí aos 17 anos eu comecei a frequentar colegas compositores, a fazer banda. E isso me levou totalmente para o contemporâneo, porque o pessoal estava ouvindo Chico Science e outros músicos da época. E eu ouvi e me interessei muito. Adorei. Estavam ouvindo Planet Hemp, também. Sepultura, “Ratamahatta”. Eu achava muito estimulante a mistura de heavy metal com Carlinhos Brown. É um hibridismo excessivo do ponto de vista do heavy metal. Racionais, também. Mas aí já é um pouco depois. Eu fiquei muito impressionado. Eu ouvi o “Sobrevivendo no inferno” uma vez, fiquei chapado e depois vim a ouvir por causa do Marcos Lacerda de novo.

Esse material de adolescência, essas músicas, elas sobreviveram?

Eu tenho uma porção de fitas. Eu devo ter mais de 30 fitas cassete da época que eu comecei a compor, com 14 anos, até o fim da fita cassete. Então essas músicas devem estar lá.

Você se interessava por uma parte da Tropicália, do cinema e tal, que era de um rompimento estético muito forte. E, no entanto, você participou de quatro festivais e ganhou os quatro. Música de festival precisa de uma comunicação imediata com a plateia, não é? Como era isso?

Mas as minhas não tinham, não.

Então você desagradava à plateia e agradava ao júri? Como é que funcionava isso?

Não era que eu desagradasse a plateia. Mas também não eram músicas que a conquistavam de primeira. Esse festival era o seguinte: o júri era muito bom. O júri era muito simpático e competente, ao mesmo tempo que havia apenas uns dois concorrentes bons todo ano. O resto era muito estudantil, era ainda muito pueril. Aquele festival estava em franca decadência. Quando eu apareci, as coisas todas estavam em decadência, e aquele festival também. Então era um “hip hip hurra” na plateia, e ganhar ali não era mérito, não. E com aquele júri, eu acabava me sobressaindo. Quer dizer, o júri, o Paulo César Pinheiro sabia que a minha letra era bem escrita. Mas, assim, se agradava à plateia, certamente não.

Interessante que você acabou assumindo a canção como seu modo principal de expressão. Mesmo que não seja uma canção “fácil”. Pela sua trajetória, você poderia ter se tornado um cineasta mais experimental ou um músico instrumental, mas foi para esse formato da canção. Como foi isso?

Sabe que eu me pergunto isso também? Eu acho que talvez tenha a ver com timidez minha… Eu sou muito tímido. Quando eu fiz faculdade de música, por exemplo, eu não consegui expandir aquilo para uma relação com muita gente. A coisa acabava tendendo a ficar na minha solidão com o violão. Quando eu me interessei pelo cinema, aos 17 anos, eu já tinha uma penca de canções feitas, já estava com banda e tal. A sensação que eu tinha era que a música, a melodia estava muito impregnada em mim desde cedo. E ela condizia, ela acalentava a minha timidez de uma maneira que me jogava ao mesmo tempo para uma inventividade. Ela poderia abrir caminho para uma inventividade radical, me acalentando. O som do violão que eu achava triste, passou a ser um som quente, de pertencimento para mim. E aí eu conseguia, desde cedo, equilibrar de uma forma um pouco tensa essa coisa que acalenta com algumas rupturas poéticas, harmônicas, melódicas.

Nessa época, que vai dos 11 anos até eu entrar na faculdade de Música, com 20 anos, a minha timidez ganhou como escudo uma outra coisa, que foi ler. A questão é a seguinte: houve a separação dos meus pais quando eu tinha 11 anos. Foi um marco para mim. Foi uma separação muito sofrida, embora não tivesse havido nenhuma briga, nada de violento. Nunca houve nada de violento na minha casa, Nada, zero. Mas a separação foi muito sofrida, um sofrimento improdutivo. Uma melancolia, não um luto. E assim que eu comecei a sair disso e esboçar ter alguns amigos e tal, a minha avó teve um Alzheimer violentíssimo e eu precisei ficar cuidando da minha avó com a minha mãe. Minha avó, mãe da minha mãe. Isso foi dos meus 14 anos até ela morrer, aos meus 18 anos. Então, eu não tive adolescência. Eu ficava em casa, escudado pelas canções e pelo Guimarães Rosa, pelo Lorca, pelo Fernando Pessoa. Eu precisava sair daquela amargura toda. Eu precisava. Aquelas coisas estavam me marcando muito. Quer dizer, você vai vendo um processo de perda… Porque a minha avó não era qualquer avó. Ela era um esteio de carinho, era uma máquina de carinho. E você vai perdendo a pessoa para a loucura, ali morando na mesma casa. E sem referência do casamento dos meus pais, que era a base da minha vida. Aquilo tudo foi me levando para uma melancolia muito grande. Eu me lembro um dia que eu peguei para ler o Sagarana. Eu entrei naquele negócio e falei: “Ah, melancolia? A vida é linda, a vida é boa, vai tudo continuar, vai tudo sempre ser, mesmo sem mim”. Aí foi a literatura chegando com a força que a música também já tinha tido.

Mas só mais uma coisa. Eu falei da Tropicália, eu falei desse cinema mais radical. Mas ao lado disso, tão profundamente quanto, eu conheci tudo do Chico Buarque, do Edu Lobo, a história do samba. O Luiz Gonzaga. Coisas que eram da minha infância, porque meu pai ouvia muita música nordestina, embora ele seja do Norte. Ele é do estado do Amazonas. Beatles, Paco de Lucía tocando Manuel de Falla ou “Concierto de Aranjuez” do Joaquin Rodrigo, Villa-Lobos. Eram coisas que não são necessariamente experimentais, porque o Villa-Lobos que se ouvia era o Villa-Lobos mais tonal. A música clássica que se ouvia era a mais tonal possível. Era o Villa-Lobos da “Bachianas nº 5” e do “Trenzinho do caipira”, não era o Villa-Lobos do “Rudepoema”. Então, a minha base é tonal, ela não é atonal.

Você conheceu o Guinga na época dos festivais?

Não. O Guinga foi um festival na época que o Conde era prefeito, que foi cria do César Maia. Conde tinha um apreço pelas artes. Ele promovia o festival Rio Jovem Artista, que tinha várias categorias: música popular, fotografia, cinema, artes plásticas, dança… Era para artistas entre 18 e 25 anos. E aí, em 1999, eu ganhei 2º lugar, com uma música chamada “Lua Mulher”, que até hoje eu acho muito bonita e não está gravada. E o Guinga estava no júri. Eu me lembro que, quando cheguei para pegar o prêmio, eu já sabia que eu tinha ganhado, era só uma festa. Era um prêmio em dinheiro, inclusive. E estava lá um amigo meu, que falou assim: “Tem uma pessoa aí que quer conhecer você”. Era o Guinga. Eu já sabia quem ele era, mas foi um encontro muito importante. Teve toda a epifania nova que foi a música do Guinga para mim. Antes, tudo aquilo tinha sido o Velho Testamento, aí começou o Novo Testamento.

Por quê?

Porque a partir do encontro com o Guinga foi quando saí da teoria, peguei o violão, encarei as polifonias todas, a expansão da tonalidade, a tradição do lirismo brasileiro. O grande contemporâneo para mim é o Guinga. Ele é a virada de página dentro da minha perspectiva. Embora haja outras viradas de página que estejam começando a me interessar cada vez mais atualmente. Mas eu não sei se eu vou ter talento e saúde suficiente para virar essas novas páginas. Algumas delas dizem respeito à questões de atitude, de política, de inclusão de ruído e tal. Mas o Guinga foi a virada de página para o que eu chamo de Novo Testamento, porque para mim ele é aquele que pega num momento em que ninguém mais espera, em que algumas coisas já pareciam oficializadas, estabelecidas num cânone, e leva com naturalidade, revelando uma perspectiva, num arco histórico muito amplo da música, de potencialidades novas de um repertório tonal que todo mundo imaginava que estava esgotado. E ele vai fazendo coisas de uma pungência impressionante. Eu já conhecia o Guinga, não tanto quanto conheci depois, mas já sabia dele e até estranhava um pouco no começo. E aquele dia essa pessoa que queria me conhecer era o Guinga. Aí é o Guinga, que nós conhecemos. Aquele cara que se coloca na humildade para vir me conhecer. “Oh, eu estava querendo te conhecer. Você estudou música? Essa sua música é impressionante”. Aquele negócio. E ali começou.

No ano seguinte, era a época que ele estava lançando a “Suíte Leopoldina”. Foi em 2000, mesmo ano em que eu ganhei 3º lugar nesse mesmo festival, e a Paloma Espínola, que era a minha namorada na época e que agora está adotando o nome de Paloma Roriz, está escrevendo livros de poesia, compõe muito bem também, ela ganhou 1º lugar nesse ano. E aí fomos receber o prêmio e aí estava lá o Guinga de novo: “Então era você! Essa tua música”. Aí, quando acabou: “Não, não vai embora não. Pega o violão”. Aí ficamos eu, ele e Paloma mostrando coisas para ele. E eu me lembro que eu tocava uma e ele tocava outra. Toquei umas cinco. A partir disso, ele começou a falar de mim por aí e é essa história que vocês já conhecem. Eu chegava num show dele e ele abria para mim, para eu cantar, me dava o violão. É a generosidade dele, que é tão general… (risos). Filho de sargento, não é general não. Tão genial quanto generoso. Interessante, né? Genial mais generoso dá o general. Que não é, né? O general não é nem genial, nem generoso. Muito menos o capitão.

E a parceria de vocês?

Aí foi depois, quando eu tinha 25 anos. Começou com “Contenda”. Ele me deu a música e eu fiz a letra. Mas, antes disso, muita coisa. Eu encontrava ele muito, tocava violão. Mas, a real é a seguinte: eu tenho muito medo do Guinga, até hoje. Morro de medo dele, porque para mim ele não é um ser humano. Ele paira. Para mim, ele é da estatura de um Tom Jobim, de um Villa-Lobos. Pra mim ele é isso. Da estatura de um Gershwin, de um Cole Porter, de um Chico Buarque. Para mim é uma coisa outra. Eu tenho medo. Às vezes eu falo isso com ele. Semana passada eu falei isso com ele. Eu estava de madrugada ouvindo um disco dele chamado “Canção da Impermanência”, que eu acho uma das coisas mais… um monumento pra mim da música brasileira. Não tem uma palavra o disco. Tem uma música, inclusive, que eu fiz em parceria com ele, que tem uma letra e ele gravou cantando solfejando. E aí eu fui tomado por uma crise de choro tão grande. Ah não, minto, minto. Tem duas letras que ele canta que são dele, lindas. E essas duas, uma chama “Lacrimare” e a outra se chama “Canção da Impermanência”. Eu estava ouvindo chorando, chorando. Aí eu escrevi para ele pelo Whatsapp, falei: “O que é isso?”, não sei o quê. Aí ficamos chorando ele de lá e eu de cá.

No meio da conversa, eu falei: “Olha, desculpa, eu não consigo”. Eu não estou conseguindo escrever letra para o Guinga há anos. É estranho isso, porque era uma coisa que eu comecei e fiz doze letras para ele. E eu achava que ia destrambelhar e que a gente ia conseguir fazer uma parceria muito grande. O Guinga compõe que nem um menino, ele não para. E eu me sinto um velho travado. Ele não fica chateado, nunca ficou chateado comigo. Mentira, mentira. Ele fica triste, ele ficou triste. Porque ele esperava que a gente fosse engatilhar uma obra grande e eu não conseguia, eu não tive fôlego. Aliás, não chega nem à questão do fôlego. Me bateu uma trava, me bateu uma sensação de que qualquer coisa que eu fizesse não ia contribuir para a beleza da melodia dele. Me bateu a sensação de que para fazer uma coisa muito boa para ele tem que ser Paulo César Pinheiro, Chico Buarque, Aldir Blanc ou Mauro Aguiar.

Você se sentiu pouco apolíneo para ele?

É, me senti. A segunda letra que eu fiz pra ele se chama “Cidade Zero”, que começava com um verso assim “Zero o giro da voragem traça um plano transversal. Ergo a urbe noutra margem para habitares fora do habitual”. Ele achou lindo e no dia seguinte ele me ligou dizendo assim: “Não, isso aí eu não consigo cantar. Não molda no meu canto”. E eu insisti. Depois ele achou lindo de novo. Até que teve um dia que ele falou o que ele sentia. Ele falou assim: “Isso parece arte, não parece canção”. Depois disso, ainda consegui fazer várias com ele. E depois comecei a compor com Francis Hime através do Guinga. E o Francis é até mais rigoroso nesse sentido de ter que parecer canção. Mas engraçado, com o Francis eu consegui. Eu fiz cinco, fiz inclusive uma recente com ele agora, chama “Sofrência”. Mas travei com o Guinga. Não estou falando que acabou não, eu vou fazer letra pro Guinga. Eu estou revelando um drama existencial profundo.

Quando eu pergunto esse negócio do apolíneo, não é uma divergência estética implícita? Porque justamente você tem a vontade de fazer o feio, o Guinga não.

Não, não tenho a vontade de fazer o feio, não.

O feio no sentido da ruptura, o Guinga não é exatamente um artista de ruptura. Ele é um artista de continuidade, de uma linha de tradição que ele reinventa, beleza, mas que vem desde lá do do Tom…

Você tem razão. O choro, aquele negócio todo. Você tem razão nesse sentido sim. Mas não está bem definido para mim se eu quero fazer ruptura, não. Tanto não está bem definido que não tem nitidez o meu gesto de ruptura. É um gesto que se perde um pouco no ruído dos tempos. Quer dizer, é um ruído que não consegue se sobrepor como ruído por ruptura ao ruído dos tempos.

Mas num determinado momento, parecia muito que estava claro para você, com aquele arroubo da juventude, de que havia uma consciência da ruptura. Se não uma ruptura com uma tradição da música brasileira, ao menos uma ruptura do que se estava estabelecido na música brasileira, um entendimento que se havia de música brasileira. Ou seja, havia uma consciência de ruptura. Queria que você falasse um pouco do seu lançar na carreira solo, seu lançar do primeiro disco, a partir dessa perspectiva.

O meu primeiro disco era muito diferente do que eu era até ele, então a grande ruptura foi comigo. Eu me lembro de que quando eu sentei para escrever os arranjos, primeiro, eu sabia que ele ia se chamar “Sacradança”. E eu sabia porque estava chamando de “Sacradança”. Eu vou falar pela primeira vez isso aqui. Eu estava chamando de “Sacradança” porque sacro é aquilo que consegue, a partir de uma ritualização, estabelecer um sentido para um caos, renomear o caos. Então eu quis fazer um disco conturbado e que operasse num nível de ruído quase para extrair dali certas ritualizações, que eram as canções, que era a dança. A partir disso fazer uma ressignificação de uma coisa que eu entendia naquela época, e ainda entendo em grande parte, que era o caos contemporâneo na sociedade brasileira. Então, por isso tinha rajadas de carnaval, misturadas com rajadas de revolução, misturadas com rajadas de conservadorismo. Tudo misturado, sem síntese possível. Ou seja, era a própria imagem do caos que eu não consegui ritualizar. Era uma sacradança tensa, problemática, e eu sabia disso. Eu fiz sabendo. Isso não é uma coisa que me surpreendeu quando eu ouvi o disco. Eu fiz o disco que eu quis porque era… tinha essa coisa de uma escrita para banda, orquestra, muito impetuosa, a busca de timbres muito agressivos, a busca de uma poética muito hermética. Hermética no sentido da palavra mesmo, do Hermes, do mensageiro…

É um reflexo, em certo sentido, da tentativa de ordenação também não cartesiana do caos que a Tropicália tinha feito? Que não busca uma síntese, né? Como a própria canção “Tropicália”.

A própria canção “Tropicália” refletia isso diretamente. Só que, nessa época, os amigos que conviviam comigo sabiam, eu estava manifestamente antitropicalista. Com raiva da ideia de que toda aquela rebeldia virou status quo. Eu tinha uma raiva muito grande disso naquela época. Era uma época onde eu estava há poucos anos na internet, nas redes sociais. O que, diga-se de passagem, gerou uma baixa intelectual criativa moral em mim muito grande. Me levou a flertar com coisas muito perigosas no espectro ideológico brasileiro. Flertar, não aderir. Flertar no sentido de criar um relativismo moral que vê uma equanimidade entre coisas que não têm equanimidade. Eu entrei naquela barafunda do Orkut, não como hater, nunca fui um hater. O meu nível de concentração das leituras dos livros que eu tinha tido dos 17 aos 24 caiu, a minha produtividade como compositor foi reduzida, tudo isso. Quer dizer, entrou um ruído. É aquele negócio, de repente pegou no ritmo alfa do cérebro. Então alguma coisa da percepção acabou ficando um pouco abalada.

O Sacradança nasce também de uma dificuldade de retomar um silêncio interior. É um drama, nesse sentido. É um drama porque eu me lembro de sentar e escrever assim: “Ah, é? É barulho, é ruído? Então vamos lá. É ruído, é barulho. E eu vou me sobrepor a esse barulho, a esse ruído, fazendo um negócio que é uma estética de barulho, ruído num grau que gera espasmos”. É o que eu quis fazer na época e não tive nenhuma repercussão no O Globo. Eu me lembro que eu fiquei danado na época. Teve destaque em Minas e em Curitiba. E no Jornal do Brasil. Eu lancei em 2010 e coincidiu com um momento… Eu me lembro que eu lancei, toquei no Cinemathèque, na Modern Sound, no Rio Laranjeiras e no Lapinha. No fim do ano, tudo tinha fechado. E o Jornal do Brasil, que tinha dado matéria sobre o disco, também acabou. Tudo naquele ano.

Tua culpa?

Não era minha culpa, mas era a minha velhice já precoce, entendeu?

Você já estava do lado dos que estavam acabando.

Eu estou falando sério, eu tinha essa sensação de que começou assim: “Ah, que barato, agora vai” e caiu tudo. Fiquei velho de repente.

É curioso essa sua irritação com a Tropicália ter se transformado em status quo. Porque eles de certa forma chegaram ao poder. Gilberto Gil no Ministério, Caetano cantando no Oscar… E a própria Tropicália antes falava da Bossa Nova como tendo feito esse percurso, de ter sido uma ruptura e depois virado status quo. Eu já percebia essa sua revolta naquela conversa que fizemos no Globo (“Geração fora do tempo”, de Leonardo Lichote, publicada em 22 de fevereiro de 2012). Naquela conversa já havia, e não só da sua parte, uma preocupação e uma consciência do perigo do relativismo associado à Tropicália, de que tudo é bom.

“Todo mundo é bom”.

A ideia de que todo mundo é bom. É uma leitura meio rasa, mas legítima, do que defendia a Tropicália. E é curioso que você ali com a sua paixão, você não tenha chegado nessa leitura da Tropicália que imagino que você faça hoje. Você hoje não está puto com a Tropicália.

Não, não estou. Eu tinha tido essa leitura da Tropicália antes daquele momento. Naquele momento, sobretudo, eu estava em luta comigo, entendeu? Era uma luta renhida comigo mesmo. Essa questão da Tropicália como um espaço de alteridade radical e tão radical a ponto de incluir até a indústria de massa num projeto brasileiro e a rigor até latino-americano e brasileiro terceiro-mundista. De inclusão da indústria de massa numa perspectiva dela e não o contrário.

Incluía o domínio americano, inclusive.

Exatamente. Essa visão eu já tinha tido. Essa visão norteava a minha ideia de misturar frevo com rock desde a primeira banda que eu fiz, que chamava Regonguz. Isso aí já tinha. A questão é que eu tinha encontrado ideólogos de direita no meu caminho naquela época. Pessoas próximas, ideólogos de direita, que estavam agindo num sentido experimental, sem nomear-se direita, aproveitando aquele vácuo moral que aconteceu. Na minha vida, isso aconteceu exatamente na época do Mensalão, em torno do escândalo de corrupção do governo Lula. A verdade seja dita: eu era um jovem despreparado politicamente. Então, eu não consegui perceber as implicações de me voltar com tanta fúria contra esse tal relativismo. Eu não percebi que isso poderia ser um abrir as guardas para um relativismo muito mais perigoso. Porque esse relativismo do qual eu estive perto, embora não tenha passado para esse lado em nenhum momento, esse relativismo do qual eu estive perto perigosamente se mostrava como uma espécie de restauração de uma perspectiva, e aí foi até onde ele me interessou. Restauração de uma perspectiva encantada da realidade, um reencantamento do mundo.

O que me blindou desse perigo foi o fato de eu já ter me interessado antes por Guimarães Rosa, Octavio Paz e Fernando Pessoa, que já faziam isso décadas antes. E quando me aproximei desse negócio perigoso, eu ainda estava num lusco-fusco que eu achava que esse negócio perigoso era apenas mais uma das manifestações dessa mística gnóstica ligada à poesia e tal. Eu achava que era apenas isso. Eu não percebia que havia um projeto de refazer o país em bases obscurantistas. De modo algum eu percebi isso naquela época… isso estou falando de 2003, 2004, 2005.

Primeiro disco isso?

Não, não. Olha só, quando eu fiz o Sacradança, eu já estava rompido com essas ideias. A questão é a seguinte: aparecem no Sacradança duas canções que são canções que eu já tinha composto e que eu acho que são canções suficientemente ambíguas para realmente estarem ali: “Sal Insípido” e “A Marcha dos Desacontecimentos”.

“A Marcha dos Desacontecimentos” é uma crítica muito aguda e muito clara a um certo tipo de comportamento associado à esquerda.

A uma esquerda Zona Sul hipster.

Sim, ou seja, é uma crítica fora desse ambiente que você está chamando de perigoso. É uma crítica bastante legítima e interessante até a essa esquerda. Ela se torna perigosa dentro daquele contexto.

Daquele e deste.

Neste contexto de hoje, exatamente, ela se torna perigosa. Num momento em que, por exemplo, a gente está lidando com a questão da Bienal (o prefeito Marcelo Crivella determinou que livros que atentassem contra a moral fossem recolhidos da Bienal do Livro, depois de uma polêmica sobre uma história em quadrinhos que trazia um relacionamento homoafetivo), uma canção como essa bate torta. Mas como é que você olha para “A Marcha dos Desacontecimentos”? Eu sempre olhei essa canção, mesmo depois de ter me parecido claro de que era isso, que estava próxima desse ambiente, que tinha surgido nesse ambiente perigoso, ela me parece uma canção com a qual a esquerda tem que se deparar.

Eu também acho. Acho a mesma coisa. Parte dessa esquerda cultural…. Não estou falando de política, tá? Estou falando de política no sentido de cultura, não estou falando de política no sentido de administração da coisa pública. Parte dessa esquerda tem uma lógica, eu acho, que é de pilhagem de colonizadores. Por exemplo, eles pegam alguns elementos do funk, alguns elementos do subúrbio e, diferentemente da Tropicália, eles procuram desterritorializar aquele negócio de um ponto de vista para uma espécie de consumo fácil, reduzindo o nível de ruído que o funk ainda tem e mantém intacto.

Quando eu falo dessa esquerda hipster, que vai flertar com todas essas coisas, é a eles que eu me refiro como os relativistas naquela época. E hoje a minha crítica a eles não é que eles sejam relativistas, é outra coisa. Mas, quando eu falo dessa esquerda hipster, o que eu falava naquela época, eu permaneço falando de algumas bandas que eu estou vendo surgindo, tanto no Brasil, quanto fora. É um negócio assim… na impossibilidade de você fazer uma síntese, o que você faz, na verdade, é uma apropriação conscientemente fetichista, que devolve para a sociedade esse fetiche da forma que adula essa sociedade da maneira como ela quer. Aí cria um negócio que é easy listening, fingindo-se transgressor.

É disso que eu falava já lá, porque quando eu fiz tanto “A Marcha”, quanto “Sal Insípido”, eu tinha acabado de ir numa festa de pessoas do Desenho Industrial da PUC. Era uma exposição de fotografia da galera do Desenho Industrial. Eu tinha ido na festa, que tinha sido no Parque Lage, e eram fotografias da fome no Nordeste, com um loungezinho tocando. Aquele negócio me atravessou. E eram todos de esquerda. Aquele negócio me atravessou, desceu torto. Bateu na minha subjetividade. Não estou falando que bateu exatamente numa consciência política avançada, não. Bateu em mim, bateu no menino que via Terra em Transe e se interessava por Terra em Transe, se interessou por Glauber cedo. Nesse sentido bateu.

Eu me lembro que, nessa época, eu estava lendo muitos pensadores cristãos, estava lendo Confissões do Santo Agostinho. Ao longo do Confissões ele vai dizendo sobre os erros que ele foi cometendo antes da conversão dele ao Cristo. Ele flertou com o neoplatonismo, com o maniqueísmo, com tudo aquilo que eram questões, eram degraus da formação intelectual, espiritual e moral dele e de que ele, muito delicadamente, foi se despindo. O livro é de uma delicadeza extrema, de uma sutileza extrema, não é uma perseguição a infiéis, “bota na fogueira”, não. Estou falando de um pensador do século IV. Então, quando eu li isso, eu estava com essa festa na minha cabeça, muito incomodado. Eu li esse negócio e pensei assim: eu tenho que fazer uma música que fosse como uma espécie de uma voz desse santo, que antes de se converter a esse Cristo, vai passando por uma série de erros. Só que, diferentemente dele, no final ele se assume como alguém que entregou os pontos. Ou seja, ele assume os erros ao invés de querer ir para a esfera do sagrado.

Eu estava movido pela ideia de sagrado e não tanto pela ideia de um absoluto cristão. A ideia de sagrado no sentido amplo. Eu sempre me interessei igualmente pelo cristianismo, pelo candomblé e pelas religiões. Eu gostava de estudar a metafísica dos negócios. Fazia por conta própria, não era um negócio muito responsável. Talvez até por não ter sido tão responsável eu tenha perigosamente chegado perto de ideólogos hidrófobos de extrema direita. “A Marcha” nasce desse negócio. Então, por exemplo, tem um verso lá que fala: “quando uma memória me exigia contrição ante o sagrado apertei um baseado. Sou da legião”. É como se fosse uma adesão à legião, que é “meu nome é legião”, aquele negócio do Apocalipse. Então tinha esse viés.

O Sacradança tem essa carga de um dedo na cara dessa esquerda hipster. Mas curiosamente os velhos de esquerda, os amigos do meu pai, meu pai e alguns velhos de esquerda, pais de alguns amigos meus, se sentiram representados. Eu acho isso engraçado. E algumas figuras com alma de velho de esquerda, como Pablo Castro, um compositor de Minas, excelente, também se sentiu representado. Até hoje, quando eu chego perto dele, ele fala: “Toca ‘A Marcha dos Desacontecimentos’”. Ele se sente profundamente representado.

Agora só uma coisa interessante para pensar contexto: você faz esse disco num momento em que a esquerda está no poder, quer dizer, que a esquerda está enfrentando todos os problemas de estar no poder.

Era como eu sentia. Era exatamente assim que eu sentia. E outra coisa seja dita: essas canções eu fiz em 2006, essas duas. As outras são anteriores. Essas duas eu fiz em 2006. Tem “Pedra de Iniciação” e o ”Gnose Song” que são de 2005, que são duas canções irmãs. Eu fiz uma num dia e a outra no outro, e são músicas que eu fiz e não são movidas por isso. Elas são movidas por um outro tipo de lidar com o sagrado. Não é um sagrado que atravessa a questão política mais imediata e sim uma busca de uma transcendência. Por exemplo, a pedra como uma centralidade do mundo. Eu estava estudando sobre esse negócio no livro O Mito do Eterno Retorno, de Mircea Eliade. Ele faz uma comparação, mostra isso no Islã, na Grécia Antiga. A ideia de uma montanha como centro do mundo. Ele vai estudando isso. E eu morava na época na frente do Pão de Açúcar. Então eu fiz isso botando o Pão de Açúcar ali.

E o “Gnose Song” foi um pesadelo que eu tive com uma explosão do mundo. Sonhei que o mundo explodia depois de um rito, de uma espécie de procissão macabra. Eu tive esse sonho e aí eu fiz a canção. Então essas duas e mais essas duas, “Sal Insípido” e “A Marcha”, elas constituem esse núcleo difícil de lidar no Sacradança. Essas canções eu fiz em 2006. Eu escrevi os arranjos para Sacradança em 2007, gravei em 2008, porque eu não tinha dinheiro. Lancei em 2010. Quando saiu o Sacradança, eu já tinha rompido com alguns núcleos de interesse. Não é que eu não gostasse mais das músicas, eu gostava. Mas, assim, eu já estava com outra coisa na cabeça. Então teve isso também.

Quando você faz os arranjos do Sacradança, que são desagregadores ou desagregados também, isso se soma a essa temática do disco. Tem cacofonia. A temática do disco é justamente não uma denúncia, mas um retrato da cacofonia do mundo. Fica mais ainda com a sensação, embora os arranjos tenham sido feitos depois, de que os arranjos estão agregados no sentido de “esse mundo está errado”.

Tinha isso mesmo. Parte dele. Eu acho o seguinte: muito perigosamente, tem muitas formas das pessoas irem se aproximando do pensamento autoritário. E minha forma de me aproximar do pensamento autoritário foi através da ideia de que a alteridade tinha que ser tão grande que tinha que incluí-lo. Mentira.

É o paradoxo da democracia.

Exatamente. Mentira. Eu sei que isso é mentira. Para lidar com o pensamento autoritário você tem que lidar com uma alteridade tão grande que consiga alijá-lo na hora certa, parar de dialogar com ele na hora certa. Isso na época eu não sabia. É como se eu tivesse bolado uma neo-Tropicália que pudesse incluir Olavo de Carvalho, pudesse engolir o Olavo de Carvalho.

Degluti-lo e gerar alguma coisa a partir daí. “Vamos comer Olavo de Carvalho”.

É, exatamente. Não, se você come Olavo de Carvalho, você morre. É envenenado pelo negócio. E não só ele, mas sobretudo ele naquele momento. E aí, eu me lembro depois de alguns e-mails que eu recebi de pessoas, de olavetes, e eu era um olavete, escrevendo para mim e eu sem querer fazer uma ruptura assim muito clara, porque eram pessoas gentis, eu falava ainda nesses termos. Eu falava: “Não, você tem que ver que é preciso fazer uma nova síntese da cultura brasileira que possa incluir essas conquistas num âmbito que não fira as nossas conquistas no sentido de uma miscigenação, no sentido de uma inclusão”. Tentando, imagina. É mais ou menos você falar assim: “Não, a gente tem que fazer Adorno e a Escola de Frankfurt conversar com Goebbels. Sentar na mesa e tratar ali para que a gente…”. Não, não é isso. Essa consciência realmente eu não tinha. Mas Sacradança abre e fecha com batida de macumba, candomblé.

Tinha um certo antídoto dentro, pelo menos.

Isso aí sem dúvida. Candomblé. Abre e fecha. A abertura com “Pedra de Iniciação” e o fechamento com “Madrêmana”.

Os seus discos e a forma como você pensa… Você é uma figura especial dentro da sua geração, um instrumentista que tem muita personalidade e com um nível de execução respeitável. Normalmente é muito difícil encontrar quem componha melodias e harmonias da forma como você faz e que também escreva letras bem. Você faz isso e é muito culto. E me parece que você reconhece isso, todas essas qualidades, a ponto de se lançar em projetos, em discos, que são realmente ambiciosos como não se via. O caso de De Ponta a Ponta Tudo é Praia-Palma. Porque a gente viu isso ao longo do século XX, esses grandes caras que queriam propor leituras no Brasil e olhavam o Brasil e queriam escrever o que era o Brasil. Só que a gente não via isso há um bom tempo. E você é um cara que se propõe a isso. Como é que é lidar com essa ideia de que você tem essa força ou essa ambição? Porque o Brasil é complicado. Você afirma em seu disco mais recente, O Cinema que o Sol não Apaga, que “o Brasil tem que ter jeito”. Você abre o disco falando que o Brasil tem que ter jeito, e faz isso a partir de uma cena de cinema que é uma canção, e é uma canção popularíssima.

É, “Malvadeza Durão”.

Uma canção de um negro da periferia. Como é que é lidar com esse tamanho de projeto? Porque você lida com um projeto desse tamanho, você não quer só fazer canções. Você faz canções mas também quer interpretar o Brasil…

Eu sou muito chamado de pretensioso, né? Daí para me chamarem de arrogante é um passo. Eu acho o seguinte em relação a isso: Tem duas coisas. Primeiro, eu tenho que saber a hora de parar de fazer isso. Tem que chegar a hora de eu parar de fazer isso, porque acaba que o meu projeto é deficitário, a minha obra é deficitária. Eu vivo sem dinheiro, sem trabalho, sem perspectiva, é um negócio terrível. E isso se deve, sim, ao que eu faço. Existem regras do jogo e aí o cara entra na estrutura resolvendo quebrar todas as regras do jogo e depois fica gritando que não tem dinheiro, que não tem trabalho… Então tem a hora que eu tenho que parar de fazer isso. Vender arma na África, mesmo, como o Rimbaud.

Ser jurado no “The Voice”.

Que, no caso, é a mesma coisa.

Mas esse é um problema das regras ou do artista?

Acho que é dos dois. Não acho que é sobretudo um problema das regras não, eu acho que é sobretudo um problema meu. Mas é das regras também. É relacional esse problema. Aí é o outro lado, bacana você perguntar isso. O outro lado é o seguinte: as regras que se estabeleceram muito antes de eu vir ao mundo… Muito antes não, mas poucos anos antes de eu vir ao mundo. Elas são regras criadas para solapar as bases da ideia de que a cultura popular brasileira, como a música, pode pensar o Brasil como projeto. Então foi solapado o projeto do Sérgio Ricardo, o projeto do Edu Lobo, o projeto do Sidney Miller. E até o projeto tropicalista naquela fase heroica, radical, inicial. Por que isso? Por que eu digo que até o tropicalista? Porque você vê, por exemplo, o tremendo sucesso junto de uma certa geração da fase “Cê” do Caetano e junto dessa mesma geração o tremendo insucesso do “Noites do Norte” do Caetano. Não fala com essa geração a mirada crítica tropicalista em relação ao país. A “criança sorridente, feia e morta estende a mão” não fala para a geração hipster com a qual a Banda Cê fala.

Mas isso você não acha que é uma questão fundamentalmente estética?

Acho que é fundamentalmente estética no caso do Caetano, mas no meu caso isso é um problema estrutural. Isso é justamente o que quase inviabiliza o meu projeto. Não inviabiliza, mas dificulta muito. Porque para mim o Caetano pode dispor desses lados todos como uma questão estética.

Não lhe parece que se o “Noites do Norte” fosse lançado um pouquinho mais a frente, num outro contexto, no ano em que o “Cê” foi lançado… Mas aí é o “se”, né?

Não é o “Cê”, é o “se”. Eu posso ter falado um negócio sem rigor aqui. Eu acho que o tropicalismo é uma coisa tão viva que ele vai se desdobrando, e as consequências dele às vezes parecem não remeter ao projeto originário dele.

Tem um elemento que é importante colocar sobre o tropicalismo. O próprio momento tropicalista tem contradições internas gigantescas que vão desde o Torquato Neto, que vai propor o precário e o autonomismo cultural de um lado, à indústria que vai vir por outro lado com Guilherme Araújo, Caetano, Gil. Tem o Rogério Sganzerla e o Glauber Rocha ajudando a criar a Embrafilme…

E o Tom Zé.

Quer dizer, discutir tropicalismo passa por tentar discutir mais do que Gil e Caetano.

De certa forma, muito do aspecto tensivo que acontece na obra do Gil e do Caetano naquele momento, e em alguns momentos, se deveu também à herança de um José Agrippino, de um Rogério Duarte. Não digo nem à herança, mas ao convívio tenso com essas figuras tão radicalmente outsiders. Sobretudo José Agrippino. E aí esse troço, essa coisa sem síntese possível que era e é a que permanece mais me interessando, acaba parecendo que resultou numa nova hegemonia, quando ela em si mesma, ainda bem, permanece um núcleo sem síntese possível. E é isso que me interessa, é isso que vai me interessar, e não necessariamente alguns desdobramentos hegemônicos da Tropicália. Só que hoje que o Brasil deu essa reviravolta, eu vejo a Tropicália ter chegado ao poder como uma coisa muito benéfica que eu na hora certa não soube festejar. Ter tido Gil como ministro foi um luxo.

Se existiam tantas contradições e impossibilidade de síntese no Brasil da Tropicália, o Brasil de Edu Lobo, de Sérgio Ricardo e tal era muito mais sintético, né? Vilões e heróis muito mais definidos. Era muito mais fechado numa síntese possível.

Aí tem o seguinte: Existe uma coisa que é você não aderir, da forma como os tropicalistas não aderem. E existe uma outra coisa que é não aderir como Edu Lobo e o Sérgio Ricardo não aderiram e não aderem. Acho que a diferença está no seguinte: quando você vê que faz parte do tempo moderno do mundo que nós sejamos periféricos, o nosso atraso entra no cômputo da modernidade de lá. Algumas dessas coisas, esses heróis muito nítidos, que parecem um pouco esquemáticos, a que você se referiu, algumas dessas coisas que eu também durante um tempo vi como esquematismo, hoje estou vendo como uma necessidade de a gente reafirmar essas coisas. Em outros patamares, claro, senão seria ingênuo.

Por exemplo, hoje seria ingênuo fazer “Arena conta Zumbi”, fazer as coisas naqueles mesmos termos. Pensar CPC da UNE, naqueles mesmos termos. Seria ingênuo, não é este mundo. No entanto, às vezes me parece que o esgarçamento total da questão da cultura para um lado que coloque o Brasil como um campo privilegiado para todos os cruzamentos livremente, me parece que isso também traz um certo poder de regressão que está aparecendo. Aderir ao mundo globalizado parece que está aderindo a um globalismo que não é globalismo, é mais uma fase do domínio do império norte-americano.

Mas não acho que envelhece o gesto do Sérgio Ricardo e do Edu Lobo. E nem a música. Eu acho que envelhece o mito, os heróis que eles elencam. Talvez esses tenham envelhecido. E muito disso aparece no rap. Olha a contradição do negócio, né? Esses heróis do Edu Lobo e do Sérgio Ricardo, a gente só está falando desses dois, né?

Pra não falar Chico Buarque.

Exatamente, pra não falar Chico Buarque, Ruy Guerra. Esses heróis aí, é evidente que não são os mesmos. Eu não defendo que sejam. Mas a questão que parece que houve um ingresso do Brasil num mundo contemporâneo, no sentido de um avanço, de um progresso, mas não houve. Então essa questão permanece a mesma. É aquele negócio que o Roberto Schwarz falou da modernização regressiva. Ele fala disso, criticando a Tropicália de um modo que me parece mais ataque pessoal ao Caetano quando fala naquele texto lá (o ensaio “Verdade Tropical: um percurso do nosso tempo”). É aquela coisa de que você tem uma história brasileira que não se desenvolve para além dos paradigmas da opressão, do mando e da sujeição da herança escravista, etc. e tal.

E, de repente, aqueles poetas e músicos daquela época equacionaram da forma mais honesta possível esse negócio. Com uma dose forte de idealismo, é inegável. E o projeto deles não é solapado apenas porque tinha idealismo, me parece. É solapado porque talvez representasse algum perigo de, por exemplo, fomentar nos universitários alguma coisa ali naquela época do Médici. E aí esses caras viram todos malditos, não encontram mais espaço nas gravadoras. Muitos dos heróis do Macalé e do Mautner são os mesmos, organizados de uma certa forma diferente.

Então parece que é o quê? Então a questão é estética? Eu não acho que seja. Acho que, na verdade, existe uma herança na música brasileira villa-lobiana que passa a ser vista com maus olhos por uma geração ali que começa, sei lá, no meio dos anos 1970, uma coisa meio disco. Naquela época parece que começa a existir um investimento das gravadoras numa ideia de internacionalização do som que solapa um projeto que, no entanto, grassou durante os anos de chumbo da ditadura.

A fase em que os executivos da gravadora viraram os egressos da Jovem Guarda.

Exato. Mas havia os circuitos universitários e havia aquele negócio estranho chamado Clube da Esquina no meio, né? Que é um negócio que durante um tempo, o carisma do Milton Nascimento atualizou de novo esse mito latino-americano em outros termos. Reorientou.

Não só latino-americano, mas reorientou a coisa da influência externa também. Porque eles trazem Pink Floyd…

O rock progressivo, o jazz. Exatamente. Então, o Clube da Esquina vai realizar, em outros termos, a pretensão tropicalista de engolir tudo em termos brasileiros terceiro-mundistas. Eu sinto que, além de ter havido um envelhecimento desses artistas (claro, envelhece, muda a coisa, surgem outros etc), houve uma sujeição maior ao som norte-americano. Uma ideia de que tudo aquilo que tinha sido caracterizador da música popular, até meados dos anos 1960, deveria também envelhecer com os anos 1960. Quando, por exemplo,  a obra do Guinga prova por si só que não envelheceu. O choro não envelheceu, o baião não envelheceu.

É um erro elencar esse modelo como um modelo brasileiro por excelência, quer dizer, um modelo que, na verdade, é calcado sobretudo na sonoridade norte-americana. Outro dia me mostraram “olha só essa menina”. Eu não vou falar o nome. Era música norte-americana completamente. Eu não estou falando que era música norte-americana como eu poderia falar que o Tim Maia é. Porque o Tim Maia pra mim não é música norte-americana. Não estou falando de Tim Maia, entendeu? Não estou falando nem do disco da Céu, “Tropix”, que pra mim é um disco brasileiríssimo. Eu estou falando de uma tendência muito posterior a esse negócio. Muito posterior a quando a Céu apareceu.

Eu não tenho problema nenhum com a ideia da influência norte-americana, pelo amor de Deus. Não é isso que eu estou falando. Eu tenho um problema com a adesão acrítica a um projeto norte-americano, como se esse projeto fosse um negócio que já está incorporado a tal ponto que é somente nele que a gente faz as reivindicações das minorias, por exemplo. Isso me parece um negócio bizarro.

A impressão que eu tenho é que a Céu está, na verdade, clamando por mais Tropicália, no sentido de mais antropofagia. O Gil e o Caetano tentam fazer isso durante toda a década de 1980, eles vão alternando. O Caetano faz um disco com uma sonoridade mais eletrônica, tipo o “Velô”, depois ele recua, faz um disco mais como o “Uns”. Depois ele faz o “Estrangeiro”, que chama os Ambitious Lovers, depois ele recua de novo com o “Circuladô”. Ele vai tentando. O Gil também, em vários momentos, em vários discos, vai tentado fazer uma sonoridade que é quase new wave em determinados momentos, porque ele está tentando dialogar com aquilo de alguma maneira e trazer aquilo pra dentro.

É provável que esse meu pensamento, que agora inclui esses gestos dos tropicalistas, se fosse naquele tempo, é provável que meu pensamento batesse na sua própria contradição interna e ouvisse um disco como Raça Humana, do Gil, como um disco de entreguista. É provável. Mas hoje eu não ouço Tropix como um disco de entreguista.

Essa percepção sobre a influência norte-americana se reflete no seu trabalho especificamente?

A palavra “contemporâneo” não é um adjetivo qualitativo, né? Não deveria ser. Esse fetiche com o tempo. Octavio Paz até vai falar isso: curiosa idade moderna que se define a si mesma a partir de uma característica que foi de todas as outras idades. Todos são contemporâneos a si mesmos. Então é estranho. E essa coisa do contemporâneo me angustia, não porque eu quisesse me refugiar numa coisa do passado, mas porque ela está trazendo os sinais do nosso atraso enquanto país. É muito concreto o meu negócio. Ela tem trazido os sinais do nosso atraso.

Eu estou falando de Sérgio Ricardo e Edu Lobo porque eu sou um compositor, um autor de música popular. Poderia estar falando de outras coisas se eu fosse continuar ainda no terreno da música. Poderia estar falando da congada, que eu vi lá em Minas Gerais, do pessoal do Vale do Araçuaí. Poderia estar falando do pessoal do Tambor de Crioula, poderia estar falando disso tudo. No entanto, estou falando de Sérgio Ricardo e Edu Lobo porque eu sou autor, sou uma pessoa que compõe, faz disco. Mas eu poderia estar falando de outras coisas e, no entanto, eu estou falando de compositores. Então parece que eu estou reivindicando uma coisa tipo assim: “tiraram da mídia dois grandes autores”. Também estou falando isso, mas não é nem tanto só isso que eu estou falando. Estou falando a que custo esse projeto de contemporaneização, que de repente redunda naquela festa que eu falei, que me gera o “Sal Insípido” e “A Marcha dos Desacontecimentos”, esse negócio meio Sebastião Salgado, mas com um lounge tocando. Até que ponto esse negócio vai entrando na corrente sanguínea?

E aí as gerações vão passando e vai ficando acrítico esse negócio. Vai ficando como uma coisa incorporada legitimamente: “Não, é assim mesmo”. Quer dizer, o fosso social é tão grande que o que seria de fato ilegítimo seria a gente botar as fotos da fome e colocar o som do Quinteto Armorial. Isso que seria ilegítimo. Eu não sei até que ponto esse negócio vai avançando e vai se internalizando como uma nova corrente sanguínea. E aí esse fenômeno hipster.

O novo aí aparece quase como uma reafirmação de um modo de classe média que é a coisa mais velha que existe no Brasil.

Isso, isso! Exato, perfeito!

Você falou: “havia a universidade”. Você falou sobre os anos Gil, a Tropicália chegando ao poder, por exemplo. Uma coisa que sempre me pegou para pensar sobre isso é como todo projeto de expansão universitária não absorveu a cultura ou a arte. Por outro lado, não houve nenhuma preocupação dos artistas de lutarem por esse espaço, de falarem: “Cara, a gente quer ter uma presença aqui, a gente quer ter um circuito de arte nas universidades”. E você falando sobre essas coisas todas, eu queria que você pensasse sobre esses espaços hoje da cultura. Como você tem visto estes espaços da cultura? Você falou: “lancei o disco, os lugares morreram”. Que lugares nasceram, que lugares existem? Como lidar com esses espaços? Ou com a escassez de espaços?

Fazendo grupos de estudo, saraus, aos quais eu vou pouquíssimo. Mas fazendo, as pessoas se encontrando. Os cristãos vão ter que adorar Cristo na catacumba.

Goethe fala que a arte é uma pequena capela, com cinco pessoas dentro…

É, talvez a gente esteja vivendo o crepúsculo de um tempo em que tenhamos tido a ilusão de que era possível fazer um negócio, uma síntese que fosse também para as massas e que fosse muito inventiva e que pensasse a questão do país como um todo. Talvez estejamos vivendo esse crepúsculo. Ou talvez não, talvez eu seja a expressão desse crepúsculo e há outras coisas surgindo. Acho mais provável isso. Que há outras coisas, claro, óbvio, há outras coisas alvorecendo, das quais eu não faça parte e a minha fala fica meio fala de ressentido. Por outro lado, o máximo que eu consegui chegar perto de estruturas grandes, mesmo assim, os momentos mais expressivos disso, foram momentos onde tão rapidamente eu fui rechaçado por elas que eu não consigo nem mensurar se alguma coisa poderia ter acontecido com o meu projeto ali.

Agora eu vejo coisas acontecendo com o projeto de outras pessoas muito interessantes. Em Belo Horizonte, onde eu tenho estado mais do que no Rio, eu sinto um pouco mais de calor em relação a isso que se chama de cena autoral, eu não gosto desse termo, acho breguíssimo. Mas assim, eu sinto um pouco mais de calor, as pessoas são mais efusivas, mais acolhedoras e há pessoas em mais quantidade. Mas mais quantidade na minha escala se conta em dezenas, não se conta em milhares.

Fora desse ambiente, que a gente vai chamar aqui tapando o nariz de “cena autoral”, acontecem coisas na música brasileira. Você citou, por exemplo, a Céu. No caso dela, já se conta em milhares. Compositoras como a Marília Mendonça ou trabalhos como de toda a cena que envolve o funk 150 BPM. Ou seja, as pessoas continuam se apaixonando, as pessoas continuam trepando, então, obviamente, as pessoas continuam fazendo música a respeito disso. E algumas conseguem tocar milhares de pessoas, seja pela estrutura econômica, seja por algum talento comunicativo. Muitas pessoas continuam sendo tocadas pela canção popular. Fora então desse ambiente autoral, que é o ambiente ao qual você pertence, o que você vê de interessante ou que você vê de potente que está acontecendo na música brasileira hoje?

Já daria para fazer uma diferença muito grande entre a Céu e esses dois fenômenos de que você falou. Eu acho muito sintomático, por exemplo, que esteja havendo uma aproximação do bolsonarismo com esse sertanejo universitário. Esses Lucas Lucco e Gusttavo Lima. Eu não poderia esperar outra coisa. Porque a reafirmação das paixões até aquele nível sempre esteve lado a lado com um certo projeto de direita, né? A gente vê, no mínimo, uma dificuldade deles lidarem criticamente com o que está acontecendo. Por exemplo, a Anitta não pôde dizer “Ele não”. Eu não sei como é viver nessa escala, eu não sei como a pessoa sobrevive a um show para 100 mil pessoas, entendeu? Eu não sei como é possível isso. Parece que realiza o sonho dos césares, o sonho do Alexandre, o Grande, sabe? Parece que realiza sonhos de ditadores.

Eu não consigo entender isso muito na escala do que me interessa. Eu não consigo entender como é que pode existir uma espécie de emissão sonora que possa equalizar tanta gente no mesmo tipo de vibração. Eu não consigo compreender isso. Eu acho que eu sou filho da crítica mesmo, não sou tão gregário, tão religioso a ponto de achar que é saudável que alguém que não tenha a tábua da lei como Moisés ou o sermão da montanha como Jesus possa falar com 100 mil pessoas ao mesmo tempo, com um milhão. Eu não consigo entender isso, não consigo opinar sobre isso.

Parece que essas pessoas em algum momento vão ter que resvalar com a ideia de que, sim, Bolsonaro representa o país mesmo. Vão ter que ver, porque estão vendo as entranhas do país. Aliás, estão vendo não, são parte da entranha do país e talvez representem esse mesmo impulso que gera o bolsonarismo. Talvez representem o mesmo impulso que gera o agronegócio, que vai ajudar a eleger o bolsonarismo. Talvez representem o mesmo impulso que gera o neopentecostalismo.

Mas não foi em certo sentido o impulso que gerou o lulismo também?

Foi, foi, é a massa. O Lula ganha quando ele vira ídolo de massa e não apenas do povo tal como o PT entendia povo.

Essa é a sua diferença com a Tropicália? Porque a Tropicália abraça essa parada.

É, mas o Caetano tenta abraçar essa parada e a mim também.

Sim, mas você não está tentando abraçar esses 100 mil.

Mas que fôlego eu tenho para abraçar? Qual seria a nitidez do meu gesto se eu resolvesse abraçar? Deixa eu fazer uma provocação aqui. Eu acho engraçado, tem uns colegas da minha geração que ficam fazendo umas releituras e dizendo assim: “Vamos furar a bolha”. Olha só, quando você fura a bolha, você sai da bolha, beleza, aí você está fora da bolha. As pessoas que estão na bolha podem até ficar com inveja. A pessoa que fica falando que furou a bolha, é para as pessoas que ainda estão na bolha. Essas escutam, os ex-colegas. Aí quem já está fora da bolha, a massa, vê aparecer alguém que fala assim: “Tô fora da bolha”. Vai ficar aquele bando de gente olhando: “O que é bolha? Que bolha? Bolha?”. Quem está fora da bolha nem sabe que existe bolha. Não está prestando atenção se o cara saiu da bolha.

Ao mesmo tempo, ao longo desses discos foi mudando. O Cinema que o Sol não Apaga tem uma linguagem que é um pouco mais estruturada, menos cacofônica do que o primeiro, e que se aproxima mais de um universo cancionista pouco mais tradicional, sem perder a densidade. E que eu acho que é mais possível de ouvir por um público maior, por exemplo, no sentido de ampliar uma bolha.

Meu som vai se reorganizando de acordo com a minha necessidade de me expressar da forma mais inteira que eu consiga. Eu já tinha apresentado a crise da década passada, com o Sacradança. Eu já tinha apresentado o sofrimento extremo com o De Ponta a Ponta Tudo é Praia-Palma, porque é um disco de sofrimento extremo, mas do que de celebração do Brasil. É um disco de alguém que saca que acabaram todas as casas onde poderia tocar e que está velho precocemente. Já tinha apresentado Todo Mundo é Bom, que era um disco sobre a confusão desta década. E já estava me sentindo mais livre para fazer outras coisas, menos agressivas, talvez. Que lidassem menos com a necessidade de provocar.

E lida com o quê?

Tem uma coisa um pouco mais gregária. Talvez traga um desejo de as pessoas erguerem as mangas e fazerem um pouco mais do que o impacto da negatividade, da contemporaneidade que estava muito presente nos outros discos. Talvez traga mais a ideia de que pode haver alguma esperança, apesar de haver momentos terríveis dentro do disco.

A harmonia no verso “o Brasil tem que ter jeito” meio que duvida do que a frase diz, né? “O Brasil tem que ter jeito, o Brasil tem que ter jeito”, nunca resolve, nunca tem jeito. Você diz que tem que ter jeito, mas nunca tem jeito, porque a própria harmonia vai rodando. Então tem até um certo humor nesse sentido, que eu acho que não estava presente antes. O humor, quando existia nos anteriores, especialmente no segundo, era de um sarcasmo tão violento que você não conseguia nem rir. Nesse ainda tem o sarcasmo, ainda está lá, mas acho que perdeu a agressividade, foi deixada um pouco de lado em algum nível. E essa música tem um carinho. Essa música inicial, principalmente, que vem da Angela Maria, ela é carinhosa.

É carinhosa. Eu cantei pra ela, inclusive.

Ela é carinhosa como João Gilberto é carinhoso

cantando “Aquarela do Brasil”.

Isso eu nunca perdi de vista, que deveria haver uma continuidade nesse gesto de carinho para com a tradição da música brasileira.

Uma vez conversamos sobre o lugar da grande canção hoje, queria que você falasse sobre isso.

Quando falo grande canção, eu estou falando de uma coisa tipo “Matita Perê”, “O Boto”, essas coisas. Eu não me sinto capaz de fazer nada nessa envergadura. Nada, nada, nada. Nem remotamente. Não me sinto um representante disso. Parece que, num momento, estava se estruturando no país, um pouco a reboque daqueles festivais, um tipo de canção muito sofisticada. Extremamente sofisticada. E, às vezes, com capacidade de levar essa sofisticação, germinar numa forma um pouco maior. Levar essa sofisticação para uma plateia que era universitária, mas que era grande. Por exemplo, o “Minas” e o “Gerais” no Maracanãzinho… Não sei se era Maracanãzinho. Mas não estou falando com saudade desse negócio, eu não vivi esse negócio.

Eu não estou falando com saudade do que eu não vivi, eu acho que o mundo muda mesmo. Mas eu questiono com base no que eu faço. Eu questiono que a gente, que é tributário desse troço, em grande medida, se a gente estuda um pouco e vê que aquele tipo de coisa cedeu vez sem talvez ter chegado aos seus, sem talvez ter germinado a ponto de chegar aos seus, eu acho que foi um projeto ceifado. Não chegou aos estertores finais de uma linguagem. Talvez isso seja da natureza da música popular. Mas acho que, de repente, os compositores se desincumbem de seguir naquela direção porque simplesmente não encontram mais espaço para aquilo e partem para outra. Ok. Talvez eles não tenham sofrido o tanto que a gente sofre por causa disso. Esse é o nosso ponto de vista agora, pós-Guinga.

E essa tal grande canção, que tinha a ver com uma herança do Guimarães Rosa sobre a música, passando por uma redescoberta da toada, do baião, do folclore, do samba de morro, aquela coisa do CPC da UNE, esse pós-Bossa Nova. Me parece que essa coisa toda poderia ainda ter se desdobrado. Me parece que era uma linguagem que ainda não tinha se expandido suficientemente para que ela pudesse ter sofrido tão rapidamente uma indiferença.

Como vê a relação dos intérpretes com sua música?

O fato de algumas cantoras terem cantado coisas minhas não me impede de perceber também que existe alguma má vontade, existe alguma preguiça. Isso que eu chamo de abandono de um projeto parte da necessidade que de repente a indústria cultural teve de transformar o ouvido das pessoas numa coisa cada vez mais consonantezinha, menorzinha. Foi necessário, de repente, parece, transformar a faixa de informação num negócio cada vez mais minguadinho para que alguns arroubos épicos brasileiros fossem comprimidos e, dessa forma, fossem também denunciados como apenas idealismo romântico bobo e abrisse espaço para um tipo de som mais pretensamente urbano e universalizado, que tem frutos lindos também.

Boa parte da música negra norte-americana flui aí também para dentro do Brasil, e isso é positivo. Mas me parece que isso, sim, hoje encontra os estertores finais enquanto potência de linguagem e, no entanto, não dá nenhum sinal de que vai sair do campo de hegemonia dele. Então, são cantoras brasileiras, cantoras nascidas no Brasil, fazendo música em português, mas que são prepostos culturais norte-americanos. E, nesse sentido, desempenham culturalmente o papel que politicamente o Paulo Guedes desempenha.

Dito isso tudo, qual você acha que é o lugar da grande canção hoje?

Lugar no sentido geopolítico parece que não há, a gente tem que cavar. Eu não conheço um lugar para isso. Mas existe uma espécie de culto secreto que está se fazendo no coração de cada um desses criadores. O coração da gente virou catacumba. E é aqui que está se criando um outro cânone, está se forjando uma outra visão, muitas vezes deslocada da realidade. É fruto da estrutura das coisas sim e é fruto da minha estrutura sim que eu não tenha como falar para o público da Marília Mendonça. É fruto dos dois. O que eu acho muito curioso é que, muitas vezes, colegas meus que não têm sucesso falam pra mim coisas do tipo: “Mas você dificulta muito”. Eu acho isso engraçado às vezes. E geralmente essa fala de “dificulta muito” é no meio de músico. Isso é bem curioso também.

A outra coisa que eu penso em relação a isso é, de um ponto de vista de uma sociologia da canção, este tipo de coisa já não é mais canção. Já é uma coisa que aspira a um outro tipo de negócio. Então se eu for querer ouvir com ouvidos de sociologia da canção, vou acabar falando coisas muito deselegantes, como essa que eu falei, do ouvido pequenininho. E aí você vai e me pega, realmente, é comparável? Comparável é, mas não é também. Porque existe a obra em termos absolutos. E aí? E se, por exemplo, o meu critério se forjou a partir da ideia de uma melodia super sinuosa, aí “Tico-Tico no Fubá” entra como grande canção. E essas canções que a Anitta está lançando não entram. E aí? É um dos ardis da pós-modernidade.

A gente vai ter que saber se a gente vai lidar com o contemporâneo num nível tão absoluto que vai caber realmente o coração de cada um ou a contemporaneidade, a pós-modernidade, nada mais é do que a expressão máxima dos projetos dos ditadores do início do século XX, que é falar a mesma coisa para 100 mil pessoas o tempo todo. Acho que é um pouco dos dois. As pessoas se apaixonam, as pessoas transam, querem prazer, querem beber sexta-feira de noite. Eu acho isso tudo legítimo e, aliás, talvez seja esse o sal da vida. Talvez seja esse e não nenhum outro. O que eu questiono é se a música melhor para representar isso é essa música de massa. Eu questiono não no sentido de dizer que não é, mas eu acho questionável, tem que ser colocado. Eu acho que às vezes a experiência humana poderia ter mais matizes se houvesse uma sociedade que não fosse de massas. No entanto, ela é, isso é fato.

Uma vez que isso está colocado assim e surgem dentro dessa sociedade de massa umas figuras quixotescas, ridículas, extemporâneas, eu não sei qual é o lugar dessa canção. Eu não acho que eu faça essa canção, mas eu não sei qual é o lugar dessa canção, da mesma forma que eu não sei qual é o meu lugar hoje. Eu não tenho um lugar. Até porque eu vou falando, na minha cabeça as coisas que eu vou falando vão se destruindo a si mesmas, cada fala que eu coloco eu falo assim: “Pronto, já me traí, não penso exatamente isso”. E outra coisa também que eu acho importante colocar: eu acho muito chato uma tendência de uma fala que eu coloquei aqui, que não é o que eu desejei falar e, no entanto, saiu. Que é o seguinte, essa ideia de que nesse projeto ceifado que eu falei, mais uma vez, Sérgio Ricardo e Edu Lobo, estaria uma ideia de Brasil mais legítimo.

Você não falou isso.

Eu não falei textualmente isso, mas pode se deduzir do que eu falei muito facilmente isso, de tantas vezes que eu frisei. E eu não acho isso, entendeu? Mas também não acho mais ilegítimo.

Abrindo outra perspectiva, o Brasil teve em alguns momentos, até recentes, o soft power americano. A ideia de que você vai conseguir conquistar um espaço internacional não pela imposição de uma força, mas pela cultura. Os americanos foram brilhantes nisso, são gênios nisso, e em alguns momentos o Brasil soube lidar com isso. E é interessante porque, na verdade, isso está dentro de uma coisa assim, tipo Bossa Nova e Era Lula. É o Obama dizendo  “esse é o cara”, Havaianas na Europa e Olimpíadas e Copa do Mundo.

O Cristo Redentor na capa da The Economist, o Lula também… Essa forma de se relacionar com os Estados Unidos, é evidente, é muito mais saudável do que esta que a gente tem. Tudo é mais saudável do que isto que está acontecendo. Mas é estranho. Estou me sentindo muito melancólico, uma sensação de que estou numa geração de exilados, muita gente se exilando. Muita gente precisando ir embora para poder trabalhar. A minha geração é isso, a nossa geração eu estou vendo maciçamente assim. E fica um negócio… quando é que vão contar essa história? Será que essa história vai ter nitidez, visibilidade?

A sua canção “A Saga do Grande Líder” é uma premonição muito estruturada do que a gente está vendo agora acontecer, inclusive das ligações com o crime. Nesse momento de melancolia, como é que a tua música atua em relação a isso?

Apontando para um futuro mítico chamado Reino do Espírito São. Vai ser o nome do próximo disco: “Reino do Espírito São”.

Isso tem ligação direta com o final do Todo Mundo é Bom?

Tem. É o sebastianismo assumindo esse negócio, só que em termos outros, diferentes do que eu sempre fiz. Em termos outros principalmente porque não vai ser épico, ao contrário do que parece quando eu estou falando.

Um sebastianismo não-épico?

É, como o Mensagem de Fernando Pessoa, que sobretudo não é um livro épico.

Você vê, frente a tudo o que está acontecendo,

a possibilidade de reinvenção da esquerda?

Eu não sei bem do que depende isso, porque muito antes de acontecer esse negócio que está acontecendo no Brasil, essa guinada à extrema direita, que o cara bate continência para a bandeira americana e ainda é chamado de nacionalista por muita gente, muito antes disso, na própria esquerda, houve, parece, uma desmobilização em relação ao que é exatamente um projeto brasileiro. Então eu não sei bem como responder a isso. A que Brasil se ancorar para poder reivindicar o fim dessa sujeição que é, em grande medida, responsável por essa história de miséria e de escravidão? Parece que o país não foi fundado ainda. Por isso esse negócio do Reino do Espírito São.

Outro dia eu fiz um post no Facebook, um negócio que fala do “se um dia houver uma geração capaz de fundar, com uma revolução armada, um país chamado Brasil, espero que ela esteja motivada pela mística do Guimarães Rosa, pela minúcia do João Gilberto e pela fúria do Glauber Rocha. E não por coaches e influencers”. Agora, isso é utopia. Quem está querendo no Brasil pensar em Guimarães Rosa, Glauber Rocha e João Gilberto? Eu sei que isso é utopia, isso é a minha utopia. Talvez o quê? De menino classe média melancólico.

Eu não sei como é que se resolve isso. Eu sei que eu lidei com coisas que me salvaram a vida e foram essas as coisas – Guimarães Rosa, Glauber Rocha, João Gilberto. Que elas tenham coincidido com coisas que, em momentos da cultura brasileira, foram consideradas de ponta, é uma grande coincidência. E que talvez me joguem para essa ideia de um Brasil de ponta a ponta. De um Brasil de ponta em termos de cultura e a cultura definindo coisas do país. Eu sei que essa ideia é extemporânea.

Quando você, Lichote, estava me entrevistando sobre o “De Ponta a Ponta”, falou um negócio que eu nunca tinha pensado. E você deu nome a uma angústia que eu tinha, mesmo com as pessoas do Coletivo Chama. Você falou assim: “Como é que você vai fazer um disco sobre a questão nacional quando está todo mundo globalizado e muita gente da sua geração nem se sente brasileiro, se sente globalizado?”. Você lembra que você perguntou isso? Aí você comparou com o disco do Tom Zé, que eu não tinha ouvido ainda, depois eu fui ouvir e fiquei maravilhado: “Tropicália Lixo Lógico”.

Essa questão, realmente, eu me sinto muito extemporâneo, porque para mim não está muito definido se o que eu faço é um troço velho ou se é o prenúncio de algo novo. Ou é uma coisa ou outra. Deste tempo, realmente, eu não estou conseguindo ser.

Mas o novo é fetiche. Tem uma galera que fala: “Ah, a gente não tem que ficar mais ouvindo Gal Costa e Caetano com tantos artistas novos no Brasil”. Eu falo: “Por que vou parar de ouvir Gal Costa? Você me dá um bom motivo pra eu parar de ouvir Gal Costa? Eu preciso parar de ouvir Gal Costa pra ouvir, sei lá, Thiago Amud?”.

Total. As coisas não são refis. O que eu posso mais é pensar quais são esses esquemas que fazem de alguma música um projeto tão hegemônico e em que medida a gente pode se dar ao luxo de jogar fora uma porção de outras coisas. Basicamente é essa a questão do ponto de vista de uma proposição macro. Do ponto de vista micro, eu quero poder sobreviver, fazer show, cantar.

Na hora de compor, na hora de pensar a composição, como vêm todas essas reflexões? Isso se impõe nos acordes? Isso se impõe na sua letra? Isso tensiona o seu coração?

Tensiona a ponto de gerar uma música como “2022” nesse disco novo, né? Tensiona a minha vida, minha experiência. Gera algumas intuições maravilhosas e alguns erros de perspectiva terríveis. Porque às vezes você está pensando nessa questão toda dentro de um apartamento. Eu esbocei a saída do apartamento no ano de 2014, mas aí veio o 2015 e acabou. Eu tinha vontade de poder viajar pelo país e ver o entrechoque real entre a linguagem e o público, mas é muito difícil. Dá vontade de você se sentir injustiçado, mas eu acho improdutivo esse sentido de injustiça, esse sentimento de injustiça. Porque eu devo estar fazendo alguma coisa errada. Ou então deve estar certo que eu esteja fora do negócio todo.

Mas pode ser que nada esteja errado, pode ser que tudo esteja certo e faça parte do cômputo geral da jogada toda que esse tipo de negócio que eu faço esteja fora de tudo. Talvez isso seja da natureza das coisas mesmo. E paga-se o preço. E aí é aquela coisa, quer dizer, você vai virando um cara póstumo. Eu me sinto uma pessoa póstuma.

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